Natália Cancian – Folha de São Paulo

Um ano após cortes, alívio em represas é insuficiente para encerrar restrições

Em um prédio residencial na região da Asa Norte, em Brasília, um aviso pede que moradores evitem banhos demorados, uso da máquina de lavar e descargas frequentes.

Em outro, o calendário do mês ganhou três cores: vermelho (para dias de racionamento de água), amarelo (para estabilização do fornecimento) e azul (dias comuns).

Em vigor há um ano, o rodízio que interrompe o fornecimento de água por 24 horas a cada seis dias virou parte da rotina em plena capital do país, que vive uma crise hídrica sem precedentes.

Ao todo, 2,1 milhões de pessoas são afetadas pelo racionamento –85% da população do Distrito Federal. A medida ocorre devido ao baixo nível de água nos dois principais reservatórios da região: Descoberto e Santa Maria.

Para se ter uma ideia, em janeiro de 2017, o primeiro e maior desses reservatórios estava com 19% de sua capacidade. O segundo, com 46%.

Após uma leve recuperação, a situação piorou nos meses seguintes, quando Brasília registrou mais de 120 dias sem uma só gota de chuva. Em novembro, o Descoberto chegou ao nível de 5,3%, o pior já registrado. O Santa Maria, a 22%.

Agora, com a retomada das chuvas, a situação começa a dar os primeiros sinais de melhora. Nesta sexta-feira (2), os dois estavam em 43,6% e 35,6%, respectivamente.

Para especialistas e governo, porém, ainda é pouco.

“Permanecemos em um estado crítico de escassez hídrica”, diz Paulo Salles, presidente da Adasa (Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento do DF).

TORNEIRAS VAZIAS

Sem alternativas, coube à população aprender a conviver com os dias de torneiras vazias e com outras medidas de controle do uso da água.

A primeira delas foi um peso maior no bolso, com cobrança de taxa extra de 20% na conta de água, uma medida que durou sete meses.

A pressão da água passou a ser reduzida das 21h às 6h. Depois veio o rodízio, com corte de 24h escalonado por área.

Ficaram de fora apenas regiões como Sobradinho, Planaltina e Brazlândia, abastecidos por outros mananciais, além dos prédios da Esplanada dos Ministérios, como o Congresso, e palácios do Jaburu (residência do presidente Temer) e Alvorada.

A Caesb (Companhia de Saneamento Ambiental do DF) diz que, “por ter população flutuante e restrita a escritórios, essa região levaria a uma economia insignificante”.

Assim, entre a população alvo dos cortes, quem não tinha caixa de água correu para tentar se precaver. “Compramos mais duas, uma de 500 litros e outra de mil litros, diz Maurício de Araújo, gerente de uma das unidades do restaurante Peixe na Rede. Ainda assim, já teve dia que ficou a ponto de acabar.”

Outros passaram a recorrer a soluções alternativas.

Em uma cafeteria na Asa Sul, a louça de vidro passou a dar espaço a copo e pratos descartáveis em dias de racionamento. Já a cabeleireira Ketlen Almeida, 20, passou a sugerir a algumas clientes que venham de cabelo já lavado. Aquela perguntinha básica de “Quer água?” também some nesses dias, confessa.

Dona de outro salão de beleza, Alcione Morgado, 51, optou por comprar um tambor de 180 litros de água para poder lavar o cabelo das clientes. “Mas já teve vezes em que demorou para a água voltar e acabou, e tive que pedir para os vizinhos”, relata.

Em uma unidade da academia Vasco Neto, a solução foi instalar uma caixa de dágua extra. Ainda assim, a consultora Rhanna Florinda diz avisar os clientes que, se o fornecimento de água demorar a voltar no dia seguinte ao rodízio, pode faltar água para o banho pós-treino.

Já na casa da enfermeira Vanessa Teixeira, 38, o banho é garantido por meio de baldes enchidos com água na noite anterior. “Temos uma caixa, mas ficamos com medo de faltar”, conta.

SEM CHUVA NEM OBRA

Mas de onde vem essa crise hídrica tão forte?

Segundo especialistas, alguns fatores ajudam a explicar o problema. O primeiro é a redução no volume de chuvas –de acordo com o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), foram três anos com chuvas abaixo da média.

Ou seja: se Brasília já era famosa pela secura, acabou por se tornar ainda mais.

O crescimento da população e a falta de investimentos em novos sistemas de captação de água pesaram muito, diz Sérgio Koide, professor de engenharia civil da UnB (Universidade de Brasília).

“Realmente a seca foi severa, mas, se tivesse havido ampliação do sistema de oferta de água, conseguiríamos passar sem maiores problemas”, afirma ele, que lembra que os alertas sobre a crise já ocorriam há vários anos.

Maurício Luduvice, presidente da Caesb, estatal ligada ao governo de Rodrigo Rollemberg (PSB), admite a demora. “Houve um planejamento, mas não foram executadas as obras”.

Segundo ele, a maioria dos investimentos foi retomada apenas em 2015. Em outubro, o governo passou a captar 1.100 litros por segundo de água de dois novos mananciais: lago Paranoá e Bananal. A captação em um terceiro sistema, Corumbá 4, está prevista até o fim deste ano.

Ainda assim, é cedo para dizer adeus ao racionamento. “Estamos bem melhor do que há um ano, mas ainda não é uma situação confortável”, afirma Luduvice.

Para ele, a possibilidade de encerrar o rodízio só poderá ser avaliada após o fim do período de chuvas, em abril. Por ironia, escolhida há três anos para ser a sede do 8º Fórum Mundial da Água, Brasília deve sediar o evento em março com dias de torneiras vazias.

“Temos que esperar para ver como vem a chuva, que é cheia de incertezas”, afirma Paulo Salles, da Adasa.

Em meio à crise, a população poupou até 980 litros de água por segundo no último ano –o suficiente para abastecer uma região como Ceilândia, cujo consumo médio é de 830 litros por segundo.

“Vemos uma mudança de cultura”, diz Luduvice.

Veja cronologia da crise:

16.set.2016

Com nível do Descoberto em estado de alerta (40%), Adasa declara situação de escassez hídrica no DF

Dez.2016

Para reduzir o consumo, DF começa a cobrar taxa extra de 20% na conta de água

16.jan.2017

Começa racionamento de água nas regiões abastecidas pelo Descoberto, principal reservatório do DF

25.jan.2017

Governo do DF decreta situação de emergência

27.fev.2017

Racionamento é estendido para regiões abastecidas pelo sistema Santa Maria/Torto

Jun.2017

Cobrança de tarifa de contingência pelo uso da água é suspensa

21.jul.2017

Governo prorroga situação de emergência

20.out.2017

Adasa autoriza Caesb a ampliar o racionamento para 48 horas, caso necessário, mas medida não é adotada

Out.2017

Após obras, DF começa a captar água de dois novos sistemas: lago Paranoá e Bananal

20.jan.2018

Após retomada das chuvas, nível do Descoberto atinge 40% e sai do estado de alerta