Sob pressão e com apoio federal, Estados ampliam parcerias com setor privado, que começa a se preparar para capitalização das empresas

Por Taís Hirata e Gabriel Baldocchi – De São Paulo – Valor
23/09/2019 05h00 Atualizado há 3 horas

Único setor da infraestrutura ainda dominado por estatais, o saneamento básico já começa a se preparar para uma nova etapa de privatizações e investimentos, apontam executivos, analistas e membros do governo ouvidos  pelo Valor. Mesmo sem uma definição sobre o novo marco legal do segmento, ainda em tramitação no Congresso Nacional, já há uma movimentação no mercado, tando na esfera pública, com a estruturação de novos projetos, quanto no setor privado, que tem buscado novas formas de capitalização.

Esse movimento começou a ser traçado há cerca de três anos, impulsionado pela crise fiscal nos Estados e municípios, pela intensificação do lobby das companhias privadas e pela forte articulação do governo federal,  parlamentares e BNDES. Nos últimos meses, os frutos desse processo começaram a surgir de forma mais concreta.

Do lado público, as próprias companhias estaduais de saneamento, que têm sido resistentes ao novo marco do setor, reconhecem que há uma pressão maior da sociedade pela universalização e que, por isso, têm buscado parcerias com o setor privado.

“Hoje, praticamente todas as empresas públicas estão buscando parcerias com o setor privado, seja por meio de abertura de capital, seja por concessões”, afirma Marcus Vinícius Neves, presidente da Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), que representa as estatais.

Nos últimos meses, avançaram diversas iniciativas nesse sentido: a proposta de oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) da Saneago (estatal de Goiás), o edital da PPP da região metropolitana de Porto Alegre e estudos para outras concessões no Rio Grande do Sul.

O apoio de órgãos federais na estruturação de projetos também é apontado como uma alavanca essencial, porque nem sempre Estados e municípios têm estrutura para realizar os estudos de modelagem.

É o caso do programa de desestatização lançado pelo BNDES no fim de 2016. De um total de sete estudos conduzidos desde então, estão sendo encaminhadas ao menos três concessões neste momento: a da região metropolitana de Maceió, em Alagoas; a da companhia do Amapá; e a de distribuição de água no Rio de Janeiro – projeto que poderá ser fatiado em mais de um leilão. Nas últimas semanas, o banco de fomento tem convocado grupos privados para apresentar os projetos e colher sugestões.

Para o diretor de Infraestrutura do BNDES, Fábio Almeida Abrahão, a aprovação do novo marco regulatório – que busca facilitar a privatização do setor e a atração de investidores – deverá impulsionar mais desestatizações. Só no programa do banco de fomento, há outras quatro companhias com projetos engatilhados, nos Estados do Acre, Pará, Ceará e Pernambuco.

Do lado do setor privado, há também uma movimentação das companhias, que hoje ocupam apenas 6% do mercado de saneamento no país. Essas empresas passaram por um período de reestruturação nos últimos anos, com a saída de empreiteiras envolvidas na Lava Jato e a entrada de fundos de investimento. Agora, os grupos se preparam para ampliar sua capacidade de investimentos, já contando com a aprovação das novas regras do mercado.

A Iguá (ex-CAB Ambiental), controlada pela gestora IG4, protocolou no fim de agosto um pedido de IPO (ver Iguá avalia postergar abertura de capital) . Ainda há incerteza se o mercado aceitará pagar o preço proposto pela companhia, mas, se concretizada a operação, será a primeira abertura de capital de uma empresa privada do setor – hoje, apenas as estatais Sabesp (São Paulo), Sanepar (Paraná) e Copasa (Minas Gerais) têm ações negociadas na Bolsa.

Outras grandes companhias privadas do setor, como BRK Ambiental, Aegea, Águas do Brasil e GS Inima, não têm planos de fazer um IPO neste momento – ao menos enquanto o novo marco legal não for aprovado, segundo fontes próximas às empresas.

No entanto, as companhias têm se estruturado para atrair recursos, seja com a emissão debêntures, seja via aportes de capital de acionistas.

A BRK Ambiental (ex- Odebrecht Ambiental), maior companhia privada do segmento, protocolou em agosto um pedido de registro inicial de companhia aberta na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). A ideia, por enquanto, é apenas emitir títulos de dívida. A possibilidade de uma abertura de capital no futuro dependerá da consolidação de um novo cenário regulatório no país, segundo fontes próximas à empresa.

Outra grande do setor, a Aegea Saneamento, que atende 49 municípios, poderá fazer um IPO ou atrair um novo sócio no futuro, mas apenas caso a empresa consiga algum projeto de maior porte, que exija um grande desembolso de capital, segundo o diretor financeiro e de relações com investidores, Flávio Crivellari. Hoje, a empresa não vê essa necessidade, diz.

“A companhia tem diversas concessões já maduras, com geração de caixa, uma dívida confortável e acesso a crédito no mercado para os próximos projetos que deverão vir. O quadro de acionistas também tem capacidade para cumprir os aportes de equity necessários”, afirma o executivo. A empresa é controlada pelo grupo Equipav e tem como sócios o fundo GIC, de Cingapura, e o IFC, ligado ao Banco Mundial.

O grupo Águas do Brasil, que atende 14 municípios, tem negociado com possíveis investidores a entrada de um novo sócio no capital da companhia no futuro, segundo Carlos Henrique da Cruz Lima, presidente do conselho de administração. “O interesse aumentou fortemente por causa da possibilidade do marco regulatório. A expectativa é que algo vai acontecer”, afirma o executivo.

A GS Inima Brasil é outra que ainda não vê necessidade de uma capitalização de terceiros. No entanto, seu controlador, o grupo coreano GS, tem mostrado disposição em injetar capital na operação casa haja oportunidades, afirmam pessoas ligadas à companhia.

Há ainda uma forte expectativa de novos entrantes no mercado, como fundos de private equity, operadores internacionais e até mesmo empresas já atuam no Brasil em outros segmentos, como o elétrico, e que poderão migrar para o mercado de água e esgoto, avalia Carolina Carneiro, analista de saneamento do banco Credit Suisse.

A avaliação do setor hoje é que dificilmente o projeto de lei que altera a regulação do setor não será aprovado. Ainda que parte dos pleitos do setor privado fiquem de fora, já há consenso em grande parte das mudanças propostas – por exemplo, a definição da Agência Nacional de Águas (ANA) como órgão regulador federal e a regulamentação da formação de blocos regionais para a prestação de serviço. “Pela primeira vez, há uma chance concreta de mudar a regra. A ideia amadureceu e ganhou apoiadores”, diz Carneiro. 

A discussão em torno do novo marco começou a tramitar no Congresso em meados de 2018. Desde então, duas medidas provisórias sobre o tema chegaram perto de serem aprovadas, mas perderam a validade, devido a controvérsias entre públicas e privadas. 

Agora, o assunto tem sido conduzido por meio de um projeto de lei. O texto já foi aprovado no Senado Federal e deverá ser votado pela Câmara dos Deputados até o fim de outubro – como haverá alterações, deverá ser novamente analisado pelo Senado.