O governo federal investiu metade do necessário para universalizar o serviço até 2033

Por Jennifer Ann Thomas

5 abri 2019, 18h01

O Brasil conseguirá universalizar os serviços de saneamento básico apenas na década de 2060. A estimativa reflete uma conta simples de investimentos, divulgada pela Confederação Nacional da Indústria na última segunda-feira, 1. Enquanto o gasto necessário em infraestrutura é de 21,6 bilhões por ano, o Brasil gastou apenas 10,9 bilhões em 2017, sendo a terceira queda consecutiva de investimentos no setor. A projeção de pouco mais de 20 bilhões por ano para o setor faz parte do Plano Nacional de Saneamento Básico, aprovado pelo governo federal em 2013 e que estabeleceu diretrizes, metas e ações para o Brasil durante o período de 20 anos, com a universalização prevista para 2033. Além disso, o Brasil é signatário da agenda de desenvolvimento sustentável da ONU, que prevê a universalização até 2030.

O saneamento básico é um conjunto de serviços de acesso à água potável, à coleta e ao tratamento dos esgotos. Segundo o Instituto Trata Brasil, uma organização da sociedade civil, o saneamento básico é um fator essencial para um país ser considerado desenvolvido. De acordo com a instituição, apenas 52,36% da população têm acesso à coleta de esgoto. Cerca de 13 milhões de crianças e adolescentes não têm acesso aos serviços e 3,1% desses jovens não têm sanitário em casa. No país, apenas 46% do esgoto coletado é de fato tratado.

Enquanto o Marco Legal do Saneamento Básico foi definido em 2007, com o sancionamento da Lei do Saneamento Básico, os índices se mantiveram irrisórios desde então. Para fazer alterações nas leis que falam sobre o saneamento, está em discussão a Medida Provisória 868, de 2018, assinada pelo então presidente Michel Temer nos últimos dias de seu governo. Contudo, o texto é recheado de controvérsias. Para definir um consenso em relação à redação final, foi instaurada uma comissão mista no dia 27 de março e no último dia 2 o plano de trabalho foi aprovado. Entre alguns dos pontos polêmicos, a MP propõe que a regulamentação de águas e esgotos, que hoje é atribuição dos municípios, se torne responsabilidade do governo federal e os contratos de saneamento passariam a ser estabelecidos por meio de licitações.

Segundo o químico e presidente-executivo do Instituto Trata Brasil, Édison Carlos, a essa altura, o país não conseguirá cumprir nem a própria meta, prevista para 2033, nem o acordo assumido com as Nações Unidas, em 2030. Contudo, para avançar de forma significativa, a participação do setor privado é essencial. “As empresas de saneamento estatais dependem de recursos do governo federal e o país está em meio a uma crise fiscal. Temos que pensar na infraestrutura e tecnologia necessárias para pessoas que vivem em regiões remotas da Amazônia, do Sertão e do Pantanal”, afirmou.

Para o presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, Roberval Tavares de Souza, se a MP for aprovada da forma como o texto está hoje, a universalização jamais acontecerá. “Sabemos que o serviço chegará à população toda em 2060. Com a MP, isso não vai acontecer nunca”, afirmou. Segundo Souza, um dos artigos da MP permite a pulverização da contratação do serviço nos estados e as empresas poderiam escolher disputar as licitações apenas nas capitais e grandes cidades, com população maior e maior arrecadação no pagamento de tarifas, e deixaria os pequenos municípios abandonados à própria sorte. “Com a atual proposta, os municípios ricos ficarão mais ricos, e os pobres, mais pobres. Defendemos que o serviço chegue a todos os cidadãos”, declarou. Para que essa meta se cumpra, Souza também concorda que o investimento do setor privado é essencial para o país. A CNI constatou o retorno econômico do investimento: cada 1 real investido em saneamento gera retorno de 2,50 reais ao setor produtivo.

Integrante da Comissão Mista, o deputado federal Samuel Moreira (PSDB) afirmou que é unânime a constatação de que o texto da MP precisa melhorar. “Da forma como está, o texto cria um desarranjo no setor. As empresas privadas devem entrar com o investimento, o sistema tem que ser sustentável pela tarifa, mas elas não podem só levar o filé mignon. O osso tem que ir junto”, declarou. A Sabesp, que opera 371 municípios em São Paulo, tem apenas 80 contratos superavitários. Os outros 291 não dão retorno financeiro à empresa. Contudo, é um acordo que garante a universalização do serviço e o lucro à empresa.

Por sua vez, o secretário de Desenvolvimento de Infraestrutura, Diogo MacCord, garantiu que a meta de 2033 continua sendo o objetivo do governo federal. “O problema não é a falta de recursos, é a eficiência. Para quem vive em cima do esgoto, 2033 está longe demais. Precisamos criar as condições para atrair o investimento, que virá com a aprovação da MP 868”, afirmou.

No ano passado, a BRK Ambiental, empresa privada do setor de saneamento básico, realizou um estudo em parceria com o Trata Brasil sobre o impacto da falta do serviço na vida das mulheres brasileiras. Segundo a Unesco, vinculada à ONU, em três quartos das residências sem acesso à água, mulheres e meninas são as responsáveis por encontrar o líquido em fontes seguras.

De acordo com o levantamento da BRK, uma em cada quatro mulheres, cerca de 27 milhões de brasileiras, não têm acesso adequado a água tratada e coleta de esgoto e a universalização desses serviços tiraria imediatamente 635 000 mulheres da pobreza. Na idade escolar, as meninas sem acesso a banheiro têm desempenho estudantil pior, com 46 pontos a menos em média no Enem quando comparadas à média nacional. O saneamento impacta no ingresso ao mercado de trabalho, uma vez que o acesso à água tratada, coleta e tratamento de esgoto poderia reduzir em até 10% o atraso escolar. Em 2013, foram registrados 7,9 milhões de casos de afastamento de mulheres por diarreia ou vômito de suas atividades rotineiras. Desse total, 3,6 milhões de mulheres ficaram acamadas em razão dessas infecções. Segundo dados do SUS, foram registradas 353 500 internações de mulheres na rede e quase 5 000 óbitos em razão de infecções gastrointestinais associadas à falta de saneamento. Outro dado aponta que 1,5 milhão de mulheres não têm banheiro em casa e que essas brasileiras têm renda 73,5% menor em comparação às trabalhadoras que têm essa estrutura mínima.

Para Carlos, do Trata Brasil, o assunto precisa da adesão da população. “o saneamento tem que ser um desejo do cidadão assim como o celular de última geração. Em muitos lugares, o cidadão nem sabe é um direito dele. Temos que lutar pela água boa e pelo esgoto tratado. Se for importante para o eleitor, vai ser importante para o prefeito, o governador e o presidente da República”, afirmou.