Por Ribamar Oliveira – Valor Econômico

Quem ainda tem dúvidas sobre a atual situação fiscal do governo federal deve ler o relatório contábil do Tesouro, divulgado no fim de dezembro, que analisa os ativos e passivos da União. Lá está dito que os ativos da União não são suficientes para cobrir as suas obrigações de curto e longo prazo – ainda faltariam R$ 2,021 trilhões. Este foi o patrimônio líquido negativo registrado em 2016 (ativo menos passivo), que aumentou 41,9% em relação a 2015. O relatório sobre 2017 será divulgado em abril. Se fosse uma empresa, ela estaria quebrada.

O Tesouro diz, em seu relatório, que o registro de passivo a descoberto “é comum entre os países que estão implantando as normas internacionais de contabilidade no setor público, como é o caso do Brasil”. Mas ressalta que “a extensão tolerável desse passivo a descoberto precisa ser entendida com base em uma análise pormenorizada dos ativos, dos passivos e dos fluxos financeiros do Estado”.

O relatório do Tesouro mostra que boa parte do ativo da União não pode ser utilizada. As disponibilidades financeiras do Tesouro na conta única no Banco Central, por exemplo, são compostas, na quase totalidade, por receitas instituídas por leis para finalidades específicas, acumuladas por órgãos e fundos (ou seja, são recursos vinculados ou carimbados).

Patrimônio líquido negativo aumentou 41,9% em 2016

Embora o estoque de créditos tributários e da dívida ativa tributária tenha atingido o montante de R$ 3,4 trilhões em 2016, apenas R$ 538 bilhões foram reconhecidos no ativo da União, ou seja, considerados recuperáveis (15,8% do total). Mesmo assim, somente uma parcela do total considerado “recuperável” ingressa efetivamente nos cofres do Tesouro anualmente.

Os técnicos destacam a grande dificuldade de cobrança dessa dívida, seja porque as empresas deixaram de existir, seja porque elas optaram por algum tipo de Refis ou por outras razões.

Outro ativo da União são os empréstimos e financiamentos concedidos a Estados e municípios. O relatório observa que, neste caso, “o total amortizado ao longo dos últimos anos não tem sido suficiente para reduzir os saldos que a União tem a receber desses entes”. O documento destaca também “o volume fortemente decrescente” de distribuição de dividendos, por parte das empresas estatais federais, nos últimos anos.

Na análise do passivo da União, o relatório dá ênfase ao forte aumento da dívida pública em poder do mercado, que saltou 36% de 2014 a 2016 – resultado dos elevados déficits primários e nominais do governo federal, que ocorrem no Brasil deste o último ano do primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff. Somente em 2016, a dívida mobiliária em mercado subiu R$ 334 bilhões.

O relatório informa ainda que as sucessivas postergações do pagamento das obrigações do Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS) foram “decisivas para o alto nível de desequilíbrio existente entre os seus ativos e passivos (estimado, no fim de 2016, em R$ 106 bilhões)”.

O Tesouro expressa preocupação com o significativo aumento dos pagamentos de precatórios e requisições de pequeno valor (RPV) nos últimos anos (em 2016, o total atingiu R$ 29,3 bilhões ante R$ 18,2 bilhões em 2014). Há críticas ainda ao acúmulo de restos a pagar das despesas orçamentárias. Alguns dos passivos se referem a despesas autorizadas nos orçamentos de 2002 a 2010, que até agora não foram executadas e nem canceladas.

É importante observar que o governo incluiu no passivo da União apenas as provisões necessárias para cobrir o déficit atuarial do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores civis. Não foram incluídos as provisões para os déficits atuariais do regime previdenciário dos militares e do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Se isso for feito, o patrimônio líquido negativo iria mais do que dobrar.

Anualmente, o Tesouro é chamado a cobrir os eventuais “buracos” dos dois regimes. Assim, os déficits atuariais tornam-se uma obrigação da União. Por isso, deveriam ser incluídos no passivo.

Um grupo de trabalho – instituído pela secretaria executiva do Ministério da Fazenda, pela secretaria executiva da Casa Civil e pela secretaria executiva do Ministério da Defesa – já chegou a critérios mais aperfeiçoados de atribuição de valor às obrigações referentes aos benefícios das pensões dos militares, bem como do seu registro contábil. A orientação é registrar a provisão relacionada aos benefícios aos militares (pensões e inativos) no Balanço Patrimonial da União de 2017.

O Ministério da Fazenda informou ao Valor que não realizou a consolidação do passivo atuarial relacionado ao RGPS por entender que “é necessário o avanço da discussão sobre esta temática para o aperfeiçoamento do modelo contábil nacional”. Além disso, ressalta a Fazenda, “a maioria dos países ainda não registra essas obrigações em seus balanços”. O fato é que a estimativa sobre o déficit atuarial do RGPS está disponível como um anexo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), em todos os anos.

O mais grave, no entanto, é que mesmo excluindo as provisões para o RPPS, o patrimônio líquido da União ainda teria sido negativo em R$ 656 bilhões em 2016, o que mostra a gravidade da situação fiscal vivida pelo governo federal. Uma fonte credenciada da área econômica disse que os dados demonstram, com clareza, que as finanças da União estão “estruturalmente desequilibradas”, o que torna ainda mais urgente as reformas que reduzam o crescimento do gasto público obrigatório, começando pela reforma dos regimes previdenciários.

O resultado desse “desequilíbrio estrutural” é o aumento da dívida consolidada líquida (DCL) da União na comparação com a receita corrente líquida (RCL), que é um dos indicadores mais importantes para avaliar a solvência de um ente estatal. No caso da União, o relatório diz que a evolução do indicador nos últimos anos “mostra uma tendência preocupante”.

A estimativa do Tesouro é que a DCL atingiu 4,01 vezes a RCL no fim de 2017. Até 2013, a DCL acompanhava um valor próximo do dobro da RCL. Em 2001, o governo chegou a propor que o Senado fixasse um limite para a DCL em 3,5 vezes a RCL. O teto nunca foi aprovado. Se estivesse em vigor, a União teria estourado o limite.