Por Camila Maia – Valor Econômico

A decisão do governo de não editar uma medida provisória (MP) para a privatização da Eletrobras, e sim um projeto de lei (PL), pode agravar um problema que já se arrasta há mais de dois anos no setor elétrico, envolvendo bilhões em inadimplência no setor elétrico: a questão do déficit hídrico (medido pelo fator GSF, na sigla em inglês).

Antes, a proposta de solução para a judicialização do GSF seria incluída na MP da privatização da estatal elétrica. Agora, a ideia do governo é que esta saia em um PL separado. Mesmo que seja dada urgência a ele, a prioridade será aprovar a privatização da Eletrobras, e o acordo sobre o déficit hídrico pode ficar para depois de fevereiro. Segundo uma fonte do governo, isso aumenta consideravelmente as chances de que o mercado de curto prazo de energia trave, o que afasta investimentos do setor, além de causar prejuízos bilionários aos agentes que ficam sem receber pela energia vendida.

Até a liquidação do mercado de agosto, concluída no início de outubro, havia um montante de R$ 3,7 bilhões em aberto, ainda protegido por liminares. Como a hidrologia permaneceu ruim desde então, com GSF elevado, e preços de energia à vista próximos do teto de R$ 533/MWh, esse montante deve crescer consideravelmente até o fim do ano.

Além da inadimplência das geradoras que estão protegidas por liminares, as distribuidoras também enfrentam um descasamento de caixa resultante do acionamento das termelétricas mais caras, e pediram o parcelamento dos montantes devidos nas liquidações.

O setor elétrico brasileiro funciona como um grande condomínio. Para preservar os níveis dos reservatórios quando não chove o suficiente, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) determina que as hidrelétricas gerem menos do que suas garantias físicas. O restante da geração é compensado por outras fontes, como termelétricas e eólicas.

Ainda que não tenham a geração de toda sua garantia física, as usinas são obrigadas a cumprir os contratos de venda de energia. No mês passado, o déficit hídrico chegou quase a 40%. Isso significa que, se uma usina tinha 100 MW médios, ela só poderia contratar 60 MW médios. Supondo que ela vendeu 95 MW médios, a usina teria exposição de 35 MW médios no mercado de curto prazo.

Com as liminares, os geradores continuam com essa exposição, mas ficam protegidos de pagar os montantes devidos nas liquidações do mercado de curto prazo. Com isso, a inadimplência cresceu e chegou aos R$ 3,7 bilhões acumulados em agosto.

Os agentes que estão protegidos por liminares estão participando das negociações de uma solução, mas ela depende da alteração legal. No caso de uma MP, o processo de regulamentação pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) pode ser acelerado, pois a agência pode trabalhar na aplicação das regras enquanto a medida tramita, já com validade de lei.

“Não conhecemos a estratégia do governo, quais são os caminhos. O que sabemos é que isso está dando uma travada no mercado. Se eles levarem [a discussão] até o ano que vem, será um risco que estarão correndo”, disse ontem Ítalo Freitas, presidente da AES Tietê, uma das geradoras protegidas por uma liminar do GSF.

A solução negociada pelos agentes para acabar com a judicialização depende de uma alteração legal. A ideia é expurgar dessa conta alguns fatores que não são considerados risco hídrico, como a geração fora da ordem de mérito (GFOM) das termelétricas e o atraso nas obras de transmissão que vão escoar energia das hidrelétricas estruturantes.

Esse montante seria valorado e transformado em extensão das concessões das usinas que concordassem com a proposta e, em troca, retirassem as liminares.