Diretora do grupo Europa, Manuella Curti, defende que, mais do que novas tecnologias, é preciso pensar em qualidade e acesso

Por Época Negócios

Eleita uma das 56 mulheres mais influentes do Brasil pela Revista Forbes em 2017, Manuella Curti, diretora-geral do Grupo Europa ‘abraça’, como ela mesma diz, mais um desafio: ser mentora de jovens e debater com eles inovações sobre o uso e gestão da água. “Abracei não só pelo lado profissional, que apoiamos como posicionamento de marca do grupo, mas também com o que eu acho que deva ser promovido como exercício de cidadania. Esse papel se fundiu ao meu papel de presidente de empresa”, conta em entrevista à Época NEGÓCIOS.

A mentoria no Brasil ocorre como parte do projeto canadense Waterlution, criado para promover o diálogo entre diferentes setores e, assim, desenvolver inovações e soluções criativas no uso e na relação com a água. “É a primeira iniciativa que eu conheço que, de fato, propõe um diálogo aberto pra falar do uso da água – envolvendo tecnologia, tratamento, reuso e também falamos de inovação social e comportamento”. Para Manuella, mais do que desenvolver novas tecnologias no setor de água, é preciso falar sobre acesso e integração de soluções. “Do ponto de vista de produtos há muita coisa no mundo. Mas como integrar esse desenvolvimento científico à realidade das pessoas? Se não conseguimos ligar uma coisa à outra, então vai ser a inovação pela inovação, e não para melhorar de fato a qualidade de vida do ser humano”, diz.

Com apenas 33 anos, Manuella já falou para mais de 30 mil pessoas pelo Brasil em palestras sobre sucessão em empresas familiares, liderança feminina e inovação. Há sete anos à frente do Grupo Europa, a executiva da geração Y lidera 300 funcionários, 140 distribuidores, 150 revendedores e mais de 3000 vendedores e técnicos espalhados por todo o país.

Qual a relação entre mulheres e a questão da água?

Essa foi uma discussão bastante filosófica e, em um primeiro momento, as pessoas não percebem que existe uma relação direta. Quando tentamos responder à essa pergunta, adentramos à questões variadas, como a maternidade, o papel social da mulheres com afazeres domésticos, o cuidado com as crianças, dando banho, lavando roupa e louça e, quando falta água, é a mulher a primeira a sentir. Muita gente aliás, quando fala de falta de acesso à água, diz que vem à mente a imagem de uma mulher andando com balde para levar para casa. Logo, a mulher acaba tendo que administrar esse papel imposto socialmente à ela. Além de tudo isso, há a própria construção da imagem da água como símbolo da vida – pois somos gestados dentro da água e nosso próprio corpo é composto, em grande parte, por água. Não à toa, estamos vivenciando o aumento no número de partos humanizados em que o bebê nasce dentro da água. Há quem também construa a relação entre água e mulher ao falar sobre fluxo, força, transparência e maleabilidade.

E qual a sua mais forte lembrança em relação à água? Você que cresceu em uma família que tem como principal atividade a gestão da água.

O meu pai perdeu o primeiro negócio que ele criou por conta de uma enchente. Depois acabou empreendendo com a água. Então a relação que tenho com a água vem de família, de ter o melhor tratamento de água do Brasil, de termos sido pioneiros nisso, lá em 1984. Esse tema esteve de forma mais inconsciente na minha vida e agora mais diretamente me apaixonei por ele. A gente começa a entender e a pesquisar muita coisa e essa relação vai se transformando. Foi um mundo novo que se abriu, então meu sentimento em relação à água é de gratidão.

O que tem hoje de mais inovador quando se fala em gestão e uso da água?

O Waterlution (projeto canadense criado para promover o diálogo entre diferentes setores sobre o uso da água) é a primeira iniciativa que eu conheço que propõe um diálogo aberto para falar de um assunto de uma forma mais ampla. Não só no que se refere à tecnologia, ao tratamento ou ao reuso, mas sobre inovação social e comportamento. Estamos iniciando nesse caminho e acho que a partir daí poderemos inovar de forma relevante.

E em termos de tecnologia?

Se olharmos apenas para a questão tecnológica, temos uma feira anual na China (Aquatech Trade) que é a maior sobre tecnologia e água, então do ponto de vista de produtos há muita coisa no mundo. Mas como integrar esse desenvolvimento científico à realidade das pessoas? Como fazer isso um instrumento de transformação? Se não conseguimos ligar uma coisa à outra, então vai ser a inovação pela inovação, e não para melhorar de fato a qualidade de vida do ser humano.

O que falta para melhorarmos nossa relação com um bem tão fundamental para nossa sobrevivência?

A água hoje é um tema que não faz parte da agenda de governo. Simplesmente não se tem debate. A maior parte das pessoas nem imagina a quantidade da população que não tem acesso à água. São outras prioridades. No Fórum Pacto Global da ONU realizado recentemente foi apresentado que 30% da população não tem acesso à água de qualidade. Isso é assustador e mostra que perdemos uma grande oportunidade de fazer com que essa discussão fosse mais relevante quando sediamos o Fórum da Água este ano em Brasília. Somos ricos em recursos de água, mas temos problemas por falta de acesso, ou por contaminação. Penso que a verdadeira inovação perpassa a questão de ter um olhar de integração. Nossa cultura ocidental geralmente é dualista e não tem a visão real da vida. Mas vivemos hoje em uma sociedade complexa, que exige uma visão mais sistêmica e que atuemos de forma mais integradora. É isso que vai fazer com que a gente tenha a capacidade de inovar, entender o que é relevante para transformar aquilo que realmente importa e que vai fazer a diferença.

O Waterlution foi também uma oportunidade de você atuar como mentora. Como foi essa experiência com mentoring?

Fui convidada há três anos para ter essa experiência. E eu abracei isso para além do tema profissional, que apoiamos como posicionamento de marca do grupo, mas também com o que eu acho que deva ser promovido como exercício de cidadania. Esse papel se fundiu ao meu papel de presidente de empresa. É um programa para jovens do mundo todo e escolheram alguns mentores para falar sobre os desafios da água e inovação e apoiar os trabalhos de desenvolvimento que são gerados. Esses jovens ficaram uma semana em imersão. Fizeram o diagnóstico dos principais problemas aqui no Brasil e elaboraram propostas. Atuei menos como especialista técnica, e mais como empreendedora – ajudando-os a construir um modelo de negócio inovador. Já no encontro promovido recentemente, o papel foi de estimular os jovens a uma reflexão ampla, principalmente sobre como tornar realidade aquilo que entendemos que são fatores importantes para as demandas atuais. A partir dessa reflexão é que conseguimos encontrar caminhos bastante assertivos nesse processo.

Como foi levar para o mentoring sua própria experiência pessoal de assumir a liderança da empresa fundada por seu pais, de uma forma repentina e em meio à uma situação delicada para a biografia da família (dois dos principais líderes da empresa faleceram em um pequeno intervalo de tempo)?

Foi um momento inesperado e uma grande surpresa [assumir a empresa da família]. Trouxe uma ruptura na biografia da minha família e com consequência na própria história da empresa. Num primeiro momento foram efeitos anestesiantes no geral. Essa foi a pior crise que passamos, uma crise de identidade quando a principal liderança e o sucessor que estava sendo capacitado para assumir deixaram de existir. Então a crise de confiança e liderança se instaurou. E aí eu assumi, muito nova. Por mais preparada que estivesse do ponto de vista técnico, assumir essa posição não está em nenhum livro. Não tem receita. Não tem solução de prateleira. Costumo dizer que a pior coisa que me aconteceu foi não ter trabalhado em nenhuma outra empresa, pois não tinha referências e, ao mesmo tempo, a melhor coisa que aconteceu foi nunca ter trabalhado em outra empresa. Isso me fez refletir e enxergar as coisas de forma diferente.

Como foi esse processo sendo jovem e mulher, em meio a essa crise de liderança que a empresa passava, e como você lidou para contar os preconceitos que com certeza existiram?

O fato de ser jovem e mulher foi chocante, pois era um empresa tradicional, com muitos homens na faixa dos 40 anos. E além de ser jovem e ser mulher, eu era ainda a filha do dono. Mas o que descobri nesse processo foi que o peso do preconceito de fora se acentua quando a gente não se apodera do nosso espaço. Ele começa dentro da gente quando eu permito. Se eu não me valorizo, eu permito que a desvalorização que vem de fora me pegue. Mas só percebi isso com muito trabalho e amadurecimento. Um trabalho constante de melhorar, ter confiança, de aprender e ter humildade. Quando a gente entende que é importante sermos nós mesmos no mercado de trabalho, isso liberta. Eu aprendi muito em todo esse processo. Não esperava o que aconteceu e aconteceu de forma muito dolorosa. Mas todo mundo da empresa também cresceu.

Neste momento está bastante quente o debate sobre igualdade de gênero, especialmente no mercado de trabalho. Como você avalia, sendo mulher à frente de uma empresa, essa questão do empoderamento feminino?

Acho que a luta hoje é de ter a liberdade de ser quem é. Não só na minha empresa, mas no Brasil, existem poucas presidentes mulheres. Eu assumi por uma situação inesperada de morte do sucessor, mas quantas mulheres não tem por aí que nunca vão chegar a essa posição por conta de discriminação? Temos que fazer nosso papel e estimular isso dentro das nossas empresas. E com a responsabilidade de trazer todo mundo para essa discussão. Ter a sensibilidade de olhar também para a questão do homem nesse processo, que também é aprisionado por essa cultura machista, que é extremamente violenta. Enquanto os homens também não se liberarem desse estereótipo de “macho-provedor-que não chora”, eles terão dificuldade de liberar as mulheres de seus estereótipos também. De qualquer forma, quando vou falar em universidades vejo que a maioria é de mulheres, então acredito que estamos no caminho.

O que é feito dentro do Grupo Europa para garantir maior oportunidade às mulheres?

Temos o programa Mulheres, destinados a funcionárias e distribuidoras. A ideia surgiu a partir da visão sobre a contribuição ímpar que as mulheres têm nos empreendimentos, muitas vezes um negócio iniciado pelo pai ou marido. São encontros para levantar quais as contribuições dessas mulheres nas empresas e o quanto é importante que elas desenvolvam seu potencial profissional. Nos encontros abordamos ainda temas como finanças e liderança. Muitas vezes elas fazem um trabalho indispensável dentro da empresa que não é reconhecido.

O que as empresas em geral podem fazer para contribuir mais com temas como inovação, água e questões de gênero?

Esses são um grande desafio não só para os jovens, ou para as empresas, mas pra sociedade como um todo. Mas temos empresas fazendo movimentos maravilhosos e reais. As empresas não são o bicho-papão. Às vezes tem um pensamento comum entre a galera mais jovem e ativista de que as empresas só pensam no lucro e ‘destroem geral’ e isso é sempre generalizado, o que acaba formando um bloqueio de diálogo. Há hoje um esforço grande das empresas pra se adequar a esse momento que o mundo está vivendo. Algumas vão fazer por verdadeira intenção, como agente de impacto positivo, outras vão se adaptar porque vão entender que se não se adaptarem estão fora do jogo. E, claro, têm as que não estão fazendo nada. Mas estamos vivendo uma crise tão grande de confiança, que está permeando o espírito social de uma forma ao mesmo tempo sutil e forte, que o diálogo, não se desenvolve. Nós somos a sociedade e cada um tem que fazer seu papel de para construir confiança.