Por Sergio Adeodato – Valor Econômico

22/03/2019 – 05:00

O transporte do vapor d’água lançado na atmosfera pelas árvores da Amazônia, fenômeno conhecido como “rios voadores”, nutre uma economia de aproximadamente R$ 5 trilhões, referente ao Centro-Oeste, Sul e Sudeste, onde se concentram expressiva fatia do agronegócio, polos industriais e 64% da população brasileira. Nessas regiões mais ricas, empresas dependentes do regime de chuvas, que se altera por causa do desmatamento, começam a olhar além dos quintais com planos de investir na conservação da floresta a cerca de 3 mil km de distância como estratégia de segurança hídrica.

“Em 16 anos, reduzimos em 30% o consumo de água por litro de bebida produzida, mas a medida não é suficiente para sermos neutros no uso do recurso e evitar riscos futuros”, diz Flávia Neves, gerente de sustentabilidade da Coca-Cola, empresa que acaba de definir o desembolso de R$ 1 milhão na mensuração da água obtida da Floresta Amazônica e quantificação de seu valor econômico. O objetivo do plano, inédito, é subsidiar a criação de mecanismos de compensação financeira pela oferta do recurso levado a outras regiões do país na forma de chuva, com investimentos no uso sustentável e no desenvolvimento de uma bioeconomia, baseada nos serviços da natureza.

“O desafio é chegar a uma metodologia segura para a água assim como já se alcançou no caso do carbono, na mitigação das mudanças climáticas”, explica Eduardo Taveira, secretário de Meio Ambiente do Amazonas.

Entender como quantificar as chuvas que se originam na Amazônia e precipitam em outras regiões em benefício da população e de atividades econômicas, diz, é o primeiro passo para se obter o cálculo financeiro, com previsão de ser apresentado em 2020. “É importante demonstrar que as questões ambientais são da sociedade como um todo.” Ele lembra que na década de 1980 o economista Samuel Benchimol (1923-2002), especialista em temas amazônicos, já dizia que a floresta deveria ser recompensada por imposto ambiental pelos serviços prestados ao planeta.

Pela proposta, o vapor da transpiração das árvores se torna um ativo com potencial de reduzir desigualdades sociais. “Ao se medir os benefícios dos rios voadores, a Amazônia poderá compensar a pegada de água das empresas que investirem em projetos produtivos voltados a manter a floresta de pé e, ao mesmo tempo, combater a pobreza”, ressalta Virgilio Viana, superintendente geral da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), organização que remunera moradores de unidades de conservação, no Programa Bolsa Floresta.

Com base no novo mecanismo de compensação, companhias de abastecimento do Sudeste, por exemplo, poderão associar a conta de água a investimentos na conservação da floresta amazônica, o que inaugura uma nova lógica no combate ao risco hídrico para além do plantio de árvores, recuperação de nascentes, controle da erosão, obras em bacias e redução de desperdícios.

A base está no estudo liderado pelo cientista Antônio Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), segundo o qual a floresta mantém úmido o ar em movimento, o que leva chuvas continente adentro. Diariamente, as árvores da bacia amazônica transpiram 20 trilhões de litros de água, com formação de nuvens de chuvas fartas, exportando rios aéreos de vapor. “A projeto agora é estimar os efeitos sobre esse poder hídrico no cenário futuro de mudanças climáticas e identificar as regiões mais suscetíveis pelo impacto do desmatamento”, explica o pesquisador Lincoln Alves, também do Inpe.

Na porção mais desmatada da Amazônia se observa o progressivo retardo da estação úmida, o que gera significativo impacto no setor agrícola. Em paralelo, o aquecimento global já está mudando o padrão de chuvas no Brasil, particularmente no Sudeste, de acordo com pesquisa da Universidade da Califórnia, nos EUA. A estimativa no Rio de Janeiro e Espírito Santo é chover menos com mais intensidade.

“Está tudo interligado e manter a capacidade da Amazônia de transferir umidade para o resto do país tem reflexo na geração de emprego e desenvolvimento, mas também na redução de custos com saúde pelo maior acesso à água”, afirma Thiago Terada, gerente de responsabilidade social da Aegea, empresa de saneamento que opera em 48 municípios, incluindo Manaus (AM). Na capital estão previstos investimentos de R$ 800 milhões para aumentar a cobertura de tratamento de esgoto de 19% para 80% até 2030.

“Grandes empresas dependentes de água deveriam se posicionar de forma mais enfática contra o desmatamento, inclusive devido a riscos no mercado externo”, afirma Carlos Rittl, secretário executivo do Observatório do Clima. Em 2017, a derrubada de árvores na Amazônia representou 25,6% de todas as emissões brutas de gases de efeito-estufa do Brasil, segundo a organização. Até hoje foram desmatados 763 mil km 2 , área relativa a três Estados de São Paulo. Para cientistas, o quadro caminha para o limite irreversível, com mudanças da vegetação, perda de biodiversidade e efeito no sistema que hoje leva chuva a outras regiões.

Segundo Eduardo Assad, cientista da Embrapa, em Campinas (SP), “é nítido o aumento da temperatura com alteração das chuvas e impactos em atividades econômicas, como o cultivo de soja”. As mudanças ocorrem, diz, mas falta constatar em qual intensidade: “Já sabemos como produzir alimento com menor emissão de carbono e agora se faz necessário aprender a usar menos água”.

Os riscos do desmatamento aceleram a busca por soluções. “Destruir a floresta é um tiro no pé e o melhor caminho são políticas públicas baseadas na ciência”, alerta o físico Paulo Artaxo, coordenador científico do Projeto LBA (Experimento de Larga Escala na Biosfera-Atmosfera na Amazônia). Na iniciativa, diversos grupos de pesquisadores já investigaram os processos de formação de chuva na floresta e hoje, na segunda fase, se dedicam aos impactos nos ecossistemas e no clima regional e nacional.

Ney Maranhão, diretor da Agência Nacional de Águas (ANA), diz que enquanto a ciência não chega a uma conclusão, “devemos levantar desde já a bandeira de um novo modelo de desenvolvimento econômico na Amazônia, em benefício do país como um todo, e não chegar ao ponto da crise hídrica de 2014 a 2016 para começar a pensar, o que seria um fracasso como sociedade e país”. O risco continua latente: em 2017, cerca de 38 milhões de pessoas foram afetadas por secas e estiagens no Brasil, quase 13 vezes mais que por cheias, sendo que o problema não está relacionado apenas às taxas pluviométricas, como também à gestão da água.