Por M. Qadir e V. Smakhtin – Valor Econômico

21/05/2018 – 05:00

Em muitas partes do mundo, simplesmente não há mais recursos convencionais de água doce disponíveis para atender a crescente demanda. Além de limitar o desenvolvimento econômico, a falta de recursos de água potável suficientes ameaça o bem-estar de bilhões de pessoas, causando conflitos, inquietação social e migração. A única maneira de enfrentar esse desafio é repensar radicalmente o planejamento e a gestão dos recursos hídricos de uma forma que enfatize a exploração criativa de fontes hídricas não convencionais.

Existe um vasto e crescente número de fontes não convencionais de água doce com grande potencial, começando com água do mar dessalinizada ou água subterrânea altamente salobra. Já existem 18 mil usinas de dessalinização em mais de 100 países, produzindo cerca de 32 bilhões de metros cúbicos de água doce – cerca de um terço da vazão atual das Cataratas do Niágara.

Cerca de 44% da produção mundial de água dessalinizada acontece no Oriente Médio e Norte da África, e novas usinas estão sendo construídas na Ásia, EUA e América Latina. A capacidade anual de dessalinização em todo o mundo está crescendo, em média, entre 7% e 9%.

Estudos recentes mostram que embora o custo da irrigação com água dessalinizada permaneça mais elevado do que usando água doce convencional, ele está em queda. Alguns anos atrás, a água dessalinizada custava mais de US$ 5 por m3; hoje custa menos de US$ 0,50.

Uma segunda fonte alternativa promissora de água doce é a neblina: uma malha vertical pode ser usada para capturar a umidade do ar, acumulando as gotículas num tanque ou sistema de distribuição. Dado que a neblina é muito comum mesmo em áreas secas, sistemas de coleta de neblina constituem uma maneira prática e econômica de prover água potável a comunidades rurais.

Alguns países já estão aproveitando essa tecnologia. Em Cabo Verde, um metro quadrado de um sistema de coleta produz até 12 litros de água doce por dia na alta temporada. Na Eritreia, com uma rede de 1,6 mil m2 , são recolhidos até 12 mil

litros por dia. O maior sistema de coleta e distribuição de neblina do mundo foi construído em 2015 nas montanhas do Marrocos – uma área com baixa disponibilidade de água, porém com neblina abundante durante seis meses por ano.

A coleta de neblina hoje custa de US$ 1 a US$ 3 por m3 de água. Acredita-se que os custos diminuarão ainda mais, à medida que o mercado de equipamentos crescer e que mais populações aldeãs se encarreguem das operações e da manutenção. Pela sua simplicidade, os sistemas de captura de neblina têm custos operacionais mínimos e são facilmente operados por equipas não especializadas.

Os governos precisam abandonar a ultrapassada premissa de que o aproveitamento de recursos aquáticos não convencionais seria tecnicamente inviável ou muito onerosa. É preciso analisar benefícios de tais investimentos em termos econômicos, sociais, ambientais e sanitários

Da mesma forma, a “microcoleta de águas pluviais” – que aproveita encostas e topografias especiais para aumentar a captação da chuva e concentrá-la em uma bacia agrícola, onde ela é efetivamente “armazenada” no solo – é útil para ecossistemas áridos, onde a maior parte da precipitação é perdida. Vários projetos no Oriente Médio e Norte da África comprovam o potencial dessa abordagem para sustentar o crescimento da vegetação em áreas muito secas.

Outra fonte não convencional de água potável são águas residuais em áreas urbanas [contendo ou não rejeitos fecais].

Mecanismos para coleta, tratamento e reutilização segura dessas águas foram demonstrados e documentados, sendo a rigorosa regulamentação para descarga de efluentes vigente na América do Norte, norte da Europa e Japão exemplo para o mundo. Águas subterrâneas confinadas em formações geológicas profundas e em aquíferos no fundo do oceano também podem ser aproveitadas.

Uma opção potencial final – e particularmente surpreendente – que os Emirados Árabes Unidos estão explorando agora é rebocar icebergs. Embora a indústria do petróleo e gás canadense reboque regularmente icebergs para evitar danos às plataformas marítimas, para os Emirados manter o gelo intacto ao longo de um percurso de 10 mil quilômetros rumo ao sul – algo que pode levar até um ano -, não é uma tarefa fácil. Mas, dada a quantidade de água contida em um iceberg de tamanho médio, vale a pena considerar essa opção.

Apesar do potencial comprovado de fontes de água não convencionais, essas soluções permanecem lamentavelmente pouco exploradas. Embora a maioria dos países com escassez de água regulamente o uso de água dessalinizada, os tomadores de decisões precisam atualizar suas estratégias de investimento, políticas de gestão de água e orçamentos públicos para integrar toda a gama de recursos aquáticos.

Para esse fim, os governos precisam abandonar sua ultrapassada premissa de que o aproveitamento de recursos aquáticos não convencionais seria tecnicamente impraticável ou excessivamente onerosa. Esforços devem ser despendidos para analisar os benefícios potenciais de tais investimentos, levando em conta as vantagens econômicas, sociais, ambientais e para a saúde, do enfrentamento da escassez de água.

Os governos também precisam definir claramente as responsabilidades das agências nacionais de recursos hídricos e melhorar a capacidade das instituições relacionadas à água em todos os níveis para instituir programas não convencionais em larga escala. Melhores práticas precisam ser estabelecidas, inovações, identificadas e testadas; e conhecimento e experiência, compartilhados.

O setor privado também tem um papel a desempenhar no aproveitamento de fontes de água não convencionais – um papel que deve se estender para além dos esforços atuais visando explorar água dessalinizada e águas residuais urbanas, de esgotos ou não. Finalmente, instituições locais, organizações não governamentais e comunidades locais precisam ser mobilizadas – por exemplo, por meio de campanhas públicas demonstrando os benefícios do aproveitamento do potencial da água de fontes não convencionais.

O Objetivo 6 das Metas de Desenvolvimento Sustentável estabelece o direito de acesso universal a água potável e a saneamento básico. Se os governos não adotarem recursos hídricos não convencionais, isso será tão difícil quanto extrair água de pedra – e as consequências para as regiões onde há escassez de água serão terríveis. (Tradução de Sergio Blum)

Manzoor Qadir e Vladimir Smakhtin são, respectivamente, diretor-assistente e diretor do Instituto Universitário das Nações Unidas para Água, Meio Ambiente e Saúde (UNU-INWEH), financiado pelo governo do Canadá University Copyright: Project Syndicate, 2018.