É um equívoco contrapor o cumprimento da Constituição ao saneamento básico, como se o ordenamento jurídico atravancasse esse aspecto

O Estado de S.Paulo

13 Fevereiro 2018 | 03h00

Recentemente, o ministro das Cidades, Alexandre Baldy, defendeu, em sua conta no Twitter, os empréstimos que a Caixa fez a Estados e municípios servindo-se de garantias de receitas tributárias. Esse tipo de financiamento é proibido pela Constituição. Segundo Baldy, essas operações foram feitas nos últimos 20 anos para levar água tratada e saneamento básico à população e, portanto, suspender tais empréstimos afetaria “a realidade de milhões de crianças do nosso país”.

Licenciado por força do cargo no governo, Alexandre Baldy é deputado federal por Goiás. Especialmente em ano eleitoral, é compreensível sua afabilidade com os eleitores e suas bases políticas. O comentário do ministro no Twitter, no entanto, foi muito além de uma tolerável demagogia eleitoral.

É um equívoco contrapor o cumprimento da Constituição ao saneamento básico, como se o ordenamento jurídico atravancasse esse aspecto tão essencial do desenvolvimento econômico e social. Na verdade, ocorre justamente o oposto. A Carta Magna confere muita importância ao assunto, estabelecendo como competência comum de todos os entes federativos – União, Estados e municípios – a promoção de programas de melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.

Se as prefeituras cumprissem a Constituição, o saneamento básico não estaria no atual estágio. Segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), 45% da população não dispõe de serviço de esgoto considerado adequado, isto é, com o uso de fossa séptica ou rede de coleta e tratamento. Tem-se, portanto, quase metade da população vivendo em ambiente insalubre, sujeita a doenças que poderiam ser facilmente evitadas.

A prioridade do saneamento não justifica, no entanto, o descumprimento de outros pontos da Constituição. O artigo 167 da Carta Magna veda a vinculação de receitas futuras com impostos a financiamentos bancários. A proibição também alcança os recursos do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), já que eles têm origem em impostos. Suas receitas vêm da divisão entre os entes federativos de alguns tributos federais, recolhidos pela União.

Apesar dessa proibição, a Caixa concedeu empréstimos tendo como garantia apenas receitas tributárias, conforme revelou o Estado. O conselho do banco, presidido pela secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, determinou a apuração dos empréstimos realizados e suspendeu novas operações, o que ocasionou a queixa do sr. Alexandre Baldy.

O grave problema do saneamento não será resolvido com atuações fora da lei. Além de ser um despautério achar que o caráter social de uma política pública possa justificar eventuais ilegalidades, esse tipo de raciocínio denota desconhecimento do assunto. As mazelas da infraestrutura de água e esgoto, que tanto prejudicam a população brasileira, não são causadas por carência de recursos econômicos.

É certo que o saneamento necessita de muito investimento. Calcula-se que, até 2035, serão necessários R$ 150 bilhões para a universalização do esgotamento sanitário nas áreas urbanas. Há, no entanto, dinheiro disponível para o saneamento. O que falta são projetos de saneamento tecnicamente bem feitos, que sejam aptos a receber os investimentos financeiros. E não há bons projetos porque a imensa maioria das prefeituras não tem condições técnicas de elaborá-los. Os municípios padecem de uma profunda inépcia administrativa. Se não for resolvido esse problema, pouco adiantará haver mais dinheiro à disposição.

Sem saneamento adequado, não se pode falar em respeito ao cidadão. Enquanto houver uma parcela significativa da população sem um adequado serviço de esgoto, o País será injusto e profundamente atrasado. Esse diagnóstico não conduz, no entanto, a voluntarismos à margem da lei. A urgência do tema deve ser estímulo para que os entes federativos cumpram a lei e enfrentem as verdadeiras causas dessa triste situação.