Por Alexandre Rosa – Valor Econômico

08/05/2018 – 05:00

Entre latino-americanos e caribenhos, somamos cerca de 630 milhões de pessoas, menos de um décimo da população mundial. No entanto, nossa região contém mais de um terço das reservas de água doce do planeta, o que se traduz em uma disponibilidade per capita de água doce de 23 mil metros cúbicos ao ano, uns 300% a mais que a média mundial. É talvez por isso que apenas em casos extremos, como as prolongadas secas causadas pelo El Niño, reconhecemos o verdadeiro valor desse recurso vital.

A disponibilidade de água é fundamental para a América Latina e o Caribe. Cerca de 70 % da eletricidade que consumimos provém da geração hidrelétrica – mais que em qualquer outra região do mundo. Muitos de nossos principais produtos de exportação dependem do fluxo regular e suficiente de água. E, claro, a vida em nossas cidades, onde residem oito em cada 10 de nossos cidadãos, não seria possível sem um abastecimento confiável de água.

Apesar dessa forte dependência, historicamente nossos países não têm dado muita atenção à segurança hídrica, a não ser quando surgem emergências que nos obrigam até a racionar o consumo. O problema é observado principalmente no manejo das bacias hidrográficas. É aí que costuma acontecer uma verdadeira “tragédia dos comuns”: por ação ou omissão de muitos atores, degradam-se ou destroem-se recursos compartilhados de que todos precisamos, um quadro que só tenderá a se agravar com a mudança climática. Isso acontece, por exemplo, nas partes altas das bacias, em que os danos ambientais causados pelo desmatamento não são corrigidos.

Felizmente, existe um mecanismo de ação coletiva para que esse problema de ninguém se converta em responsabilidade de todos. Em 2011, formamos entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento, The Nature Conservancy, a Fundación Femsa e o Fundo para o Meio Ambiente Mundial uma parceria público-privada para criar e impulsionar fundos de água, um instrumento financeiro e de governança destinado à conservação de fontes de água através de soluções baseadas na natureza, o que se conhece como infraestrutura verde.

Os fundos alavancam recursos públicos e privados e investem os rendimentos financeiros em projetos de conservação: reflorestamento de encostas erodidas, criação de áreas protegidas em zonas de alto valor ecossistêmico, gestão de pagamentos por serviços ambientais a produtores de uma área, capacitação e melhora de suas práticas agropecuárias, entre outros.

Nestes sete anos, ajudamos a criar e fortalecer 23 fundos de água no Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, México, Peru e República Dominicana, e novas iniciativas estão em desenvolvimento em países como Argentina e Chile.

Esses mecanismos mobilizaram mais de 200 organizações públicas e privadas para apoiar projetos de mais de US$ 150 milhões em bacias que abastecem mais de 80 milhões de pessoas.

Historicamente países da região não têm dado atenção à segurança hídrica, a não ser quando surgem emergências

Os recursos estão sendo investidos em uma série de projetos de infraestrutura verde que promovem a conservação das bacias e complementam os investimentos em infraestrutura cinza. Em alguns casos, estão sendo reflorestadas encostas altamente erodidas; em outros casos, criam-se áreas protegidas, disseminam-se práticas agrícolas sustentáveis ou geram-se pagamentos por serviços ambientais.

Os casos de Paraíba do Sul e Guandu no Brasil são um exemplo alentador. Essas bacias abrangem uma área de 6,6 milhões de hectares e garantem o abastecimento de água potável para 14 milhões de pessoas na região do Rio de Janeiro. Em 2014 e 2015, a disponibilidade do recurso chegou a níveis mínimos por causa de eventos climáticos extremos como a seca, pondo em risco os sistemas de abastecimento de água dependentes dessas bacias hidrográficas.

Para lidar com isso, o Fundo de Água do Rio de Janeiro concentrou seus esforços em fortalecer os projetos de infraestrutura verde, trabalhando muito de perto com o governo e obtendo a aprovação de um total de US$ 15,7 milhões destinados a investimentos por parte do Comitê Guandu e do Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul, com intervenções para a proteção, preservação, conservação e recuperação de mananciais.

Outro exemplo é a cidade de São Paulo, lar de mais de 20 milhões de pessoas e uma das maiores metrópoles da América Latina. Em 2014, a cidade enfrentou uma crise hídrica sem precedentes. O Fundo de Água de São Paulo, criado em 2013, está contribuindo com investimentos em infraestrutura verde que aproveitam o poder da natureza para captar, filtrar e regular o ciclo da água.

Entre as atividades do Fundo, criou-se uma plataforma digital para mapear e registrar cerca de 4.300 cadastros de propriedades rurais localizadas em mais de 80 mil hectares da bacia hidrográfica que compõe o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de 10 milhões de pessoas que habitam a região metropolitana de São Paulo. Por meio dessas ações de conservação, espera-se gerar benefícios ambientais como a preservação de rios, a conservação da biodiversidade e a absorção de carbono, o que ajuda a enfrentar a mudança climática. Até o momento, foi empreendida a conservação, restauração e implementação de melhores práticas em um total de 8 mil hectares, beneficiando diretamente 283 famílias na parte alta da bacia.

O fundo de água de Lima é outro exemplo paradigmático. A capital peruana, com mais de 9 milhões de habitantes, é a segunda maior cidade do mundo assentada em um deserto, depois do Cairo. A região, que recebe apenas 9 milímetros de chuva por ano, depende da água que é trazida pelos rios Chillón, Lurín e Rímac das serras circundantes. Graças à ação coletiva de diversos parceiros, conseguiu-se uma reforma do marco regulatório dos serviços de água para que as empresas de água destinem uma porcentagem de sua arrecadação para a infraestrutura verde e a mitigação e adaptação à mudança climática.

O progresso obtido pelos primeiros fundos de água nos estimula a continuar apoiando sua criação e fortalecimento. Até o ano 2020, esperamos criar e fortalecer um total de 40 fundos, para abranger cerca de quatro milhões de hectares de ecossistemas essenciais e alavancar US$ 500 milhões para investimento em infraestrutura verde.

Dessa maneira, estaremos dando um grande passo não só para a segurança hídrica de nossa região, mas para uma melhor qualidade de vida de nossa gente.

Alexandre Meira da Rosa é vice-presidente de Países do Banco Interamericano de Desenvolvimento