Por Nilson Teixeira – Valor Econômico

02/05/2018 – 05:00

Eu já discuti o tema do FGTS diversas vezes neste espaço. Minhas críticas ultrapassam as questões da má utilização dos recursos, da perda de valor dos depósitos em termos reais, do erro de manter o FI-FGTS e do equívoco de uma eventual transferência da gestão da Caixa para outras instituições. Do mesmo modo, essas críticas são mais profundas do que o fato de que mesmo os usos mais meritórios do fundo desvirtuam o seu objetivo inicial de criar uma poupança para o caso de demissões sem justa causa. Meu questionamento principal é sobre a própria existência do FGTS.

Os recursos do fundo têm sido utilizados nos últimos anos para outros fins, além do financiamento habitacional (R$ 269 bilhões em setembro de 2017 – dados da Superintendência Nacional do FGTS) e da infraestrutura e saneamento básico (R$ 34 bilhões). Por exemplo, o governo passou a utilizar o saldo do fundo para subsidiar o programa Minha Casa Minha Vida, em substituição aos recursos orçamentários. Do mesmo modo, em 2016, o Congresso aprovou o uso de 10% do saldo e da totalidade da multa de 40% do FGTS como garantia do crédito consignado para empregados do setor privado. Ambas as decisões são distorções adicionais.

A política mais acertada do atual governo – coincidentemente uma das mais bem avaliadas – foi a autorização, em 2017, do saque das contas inativas até dezembro de 2015, totalizando R$ 44 bilhões. Apesar desse sucesso, surgiram diferentes propostas, mesmo entre os candidatos à presidência que se intitulam liberais, que mantêm a tutela dos trabalhadores e o direcionamento dos recursos do FGTS.

O correto é custear esses programas sociais com verbas do orçamento federal e não com as do FGTS Ao contrário de ampliar a liberação dos recursos, alguns defendem que os depósitos no FGTS sejam utilizados como contribuição em contas individuais de um novo sistema de previdência complementar compulsório. Apesar dessas contas serem um instrumento adequado de estímulo à poupança, discordo de políticas que criam regras não discricionárias.

Uma outra proposta é a de igualar a remuneração das contas do FGTS à TLP. Essa decisão exigiria a alteração do uso dos recursos do fundo, com recuo expressivo da concessão de subsídios. Os subsídios para aquisição de imóveis totalizam R$ 68 bilhões desde 1998, sendo o Programa Minha Casa Minha Vida responsável por R$ 51 bilhões desde 2009 (R$ 8,5 bilhões em 2017). A manutenção dos subsídios e a garantia de remuneração similar à TLP demandariam que parte dos ativos fosse aplicada em investimentos de risco bem maior do que o dos títulos públicos ou que houvesse um recuo contínuo do patrimônio líquido do fundo. Isso não parece adequado.

Uma proposta efetivamente liberal seria a completa extinção do FGTS, com saque do saldo de todas as contas. Segundo o balancete de setembro de 2017, os depósitos vinculados eram de R$ 375 bilhões e os títulos públicos e operações compromissadas totalizavam R$ 109 bilhões naquela data. Assim, o desembolso imediato poderia ser expressivo, superando os saques das contas inativas em 2017, sem gerar problemas de liquidez no fundo. Nesse caso, o justo seria

iniciar as retiradas pelas contas dos trabalhadores com salários mais baixos. Essa devolução selaria o fim da tutela do Estado no que se refere à imposição de formação de uma poupança forçada pelos trabalhadores do setor privado.

Aprovada a extinção do FGTS, a outra questão seria como utilizar a contribuição do empregador de 8% do salário dos trabalhadores. Uma das alternativas seria a transferência desses valores para os depositantes, aumentando os salários brutos em 8% e a massa salarial em valor similar à arrecadação bruta do FGTS (R$ 124 bilhões em 2017). O impacto imediato na economia seria menor, pois o acúmulo líquido do fundo tem recuado gradualmente (R$ 10 bilhões em 2016).

Mesmo assim, essa decisão estabeleceria o livre-arbítrio sobre o uso dos recursos, seja para o pagamento de dívidas, a elevação do consumo ou a construção de poupança de longo prazo. Uma segunda opção seria a redução do custo da folha de pagamentos para os empregadores. Isso diminuiria o custo das empresas, contribuindo para o aumento de sua lucratividade e a redução de preços na economia. Uma combinação de ambas seria outra alternativa.

A extinção do fundo e a devolução dos saldos de todas as contas sofreriam oposição de vários grupos beneficiados pelas atuais políticas. Uma das argumentações contrárias seria a de que o fim do FGTS poderia reduzir os recursos disponíveis para programas do governo, dado que o seu orçamento alcança valores significativos (R$ 76 bilhões em 2017 – 80% realizados). Apesar de alguns desses programas serem positivos, a concessão de subsídios com recursos do FGTS é uma distorção injustificável, pois não cabe aos trabalhadores formais do setor privado subvencionar esses programas. Outra argumentação seria a de que o saque das contas elevaria fortemente o consumo e a inflação. Não obstante, a estratégia correta para evitar esses efeitos não é a de manter mecanismos de poupança obrigatória e sim estimular a formação de poupança de maneira voluntária pela sociedade, por meio de uma ampla campanha institucional do governo.

Em suma, o debate sobre o FGTS é urgente. Os investimentos públicos em projetos sociais de qualidade são indispensáveis para elevar o bem-estar da população. No entanto, o correto é custear esses programas com verbas do orçamento federal e não do FGTS. O caminho mais acertado para o FGTS é a sua extinção. Reconheço, porém, que essa proposta, por ora, é vista como extrema e não tem apoio no Congresso. Um passo menor, mas ainda relevante, seria o de autorizar o saque dos depósitos até uma determinada data nas contas ativas dos trabalhadores mais pobres. Uma proposta dessa natureza, menos radical do que a extinção do FGTS, teria forte apoio da sociedade e dos parlamentares. Portanto, há muito espaço para avançar em uma agenda genuinamente liberal. Basta querer!

Nilson Teixeira, Ph.D. em economia pela Universidade da Pensilvânia, escreve quinzenalmente neste espaço.