MP do setor não universalizará atendimento, mas pelo menos segue a direção correta

Folha de São Paulo

8.ago.2018 às 8h00

É notório que o problema de infraestrutura básica mais importante para a população brasileira seja o saneamento básico. Mesmo entre as dez maiores economias globais, temos mais de 100 milhões de cidadãos sem rede de coleta de esgoto e 120 milhões sem acesso ao tratamento de esgoto.

Após uma política de saneamento básico no regime militar, apenas o acesso à água encanada avançou; porém, ainda temos 35 milhões de brasileiros fora da conta. No ritmo atual de investimentos, a universalização dos serviços, prevista para 2033 no Plano Nacional de Saneamento, atrasará, pelo menos, 20 anos.

É essencial darmos um salto não somente na quantidade, mas também na qualidade do saneamento. Partindo deste princípio, o governo federal anunciou uma medida provisória (MP) para dar outros tons ao saneamento básico no Brasil. Embora composta, em sua maior parte, por pontos debatidos há anos, a MP está sendo questionada por muitos.

O primeiro ponto de debate é sobre a regulação dos serviços de água e esgoto no Brasil. A nova MP propõe que a ANA (Agência Nacional das Águas) seja a formuladora de normas de referência para as quase 50 agências espalhadas pelo país. A solução dada na MP busca corrigir a falta de homogeneidade de atuação das agências, sempre citada como um dos pontos de insegurança jurídica e um inibidor para execução de políticas públicas e investimentos de longo prazo.

A agência também estabelecerá mecanismos de fiscalização e análises dos contratos existentes entre operadores e municípios, uma vez que muitos não têm monitoramento, metas, prazos, obrigações e perspectiva de universalização.

Entendemos ser importante que a ANA seja preparada para essa função, com estrutura e quadros especializados, podendo, assim, fazer esse papel e com obrigatoriedade de cumprimento ligada ao acesso aos recursos de financiamento. Importante dizer que as diretrizes nacionais mantêm a liberdade dos municípios, ao mesmo tempo em que tornam a regulação mais homogênea —um pedido do setor desde a promulgação da lei atual, feita em 2007, após décadas de debates.

O segundo ponto, pouco lembrado, é a obrigação de o município pensar em soluções para o saneamento em toda a cidade, e não somente nas áreas urbanas. Atendimento de água e esgotos em áreas rurais, em processo de regularização, isoladas, indígenas, fazem parte das obrigações do país com suas metas internacionais; portanto, precisam ter projetos, recursos, responsáveis e metas a cumprir.

Vale citar também a possibilidade de prestação de serviços e formulação de planos de saneamento regionais, seja por consórcios, comitês de bacias hidrográficas ou similar; a possibilidade da cobrança da tarifa pela disponibilidade das redes de esgoto, induzindo o morador a cumprir com seu papel de cidadão conectando a moradia à rede de saneamento e o retorno dos investimentos feitos; a tão sonhada auditoria no (SNIS) Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento para que o país tenha uma base de dados confiável e assim possa formular políticas que considerem o real desafio do país; a criação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico, visando coordenar a ação dos (vários) ministérios ligados ao saneamento.

Existem mais pontos positivos, mas infelizmente o debate está preso no dilema da operação pública e/ou privada —peculiaridades que podem travar todo o conjunto de medidas que visam trazer novos ares ao setor. O fato é que o Brasil precisa de mais de R$ 350 bilhões para universalizar a água e os esgotos —sabidamente proibitivos se pensarmos apenas em recursos públicos.

Hoje, 90% dos brasileiros são atendidos por empresas públicas, e a predominância pública existirá sempre. Portanto, a atuação conjunta, sim, ajudaria o Brasil a sair da posição incômoda de estar entre os piores países do mundo, e mesmo na América Latina. Vivemos com indicadores do século 19, cercados de doenças e num inédito aumento da mortalidade infantil.

Independente de pública ou privada, o importante é mudar esse modelo, fortalecer a regulação dos serviços e pressionar pela melhoria do atendimento ao cidadão, que municípios, estados e empresas tenham melhor gestão e metas a serem cumpridas. Não podemos nos iludir e achar que a medida provisória universalizará o saneamento, mas, ao menos, endereça soluções na direção correta.

Édison Carlos e Gesner Oliveira

Presidente-executivo do Instituto Trata Brasil; Sócio da GO Associados e professor da FGV