Por Antonio Delfim Netto – Valor Econômico

No Brasil “profundo” talvez nenhuma instituição tenha mais credibilidade junto à sociedade do que a Caixa Econômica Federal. Fundada há quase 160 anos (1860) era constituída, em cada província, por uma organização autônoma. Tomou a forma centralizada que hoje conhecemos (1969) quando foram integradas num só organismo, do qual, cada uma transformou-se em uma “filial”.

No imaginário popular, a Caixa tem sido, desde sempre, o “último e seguro refúgio para as parcas poupanças dos menos afortunados”. Ela é, ainda, vista como a última e eficaz “socorrista” dos mais pobres. Esses podem, em caso de urgente necessidade, “empenhar” a aliança do casamento para pagar o engessamento da perna quebrada de seu filho. E recuperá-la quando a situação melhorar…

Até a criação do Banco Nacional de Habitação (1964), foi a grande financiadora do primeiro desejo do homem: um teto para morrer tranquilo e deixar a família abrigada. Só recuperou essa posição em 1986, quando teve que “incorporar” o próprio BNH, tornado insolvente justamente pelas alegrias das facilidades políticas…

Por falta de controle, Caixa deixou de cumprir os parâmetros do BC Em 1974, graças a um projeto para aumentar a poupança nacional, a Caixa abrigou o Programa de Integração Social (PIS), um fundo nominal dos contribuintes do setor privado, criado com a redução de 0,5% da alíquota do ICMS para financiar a atividade produtiva e, eventualmente, participar dela como sócio nos lucros. Ele, que teria transformado a relação trabalho-capital, revelando, na prática, que ela pode ser um jogo “ganha-ganha”, foi destruído pela miopia de dissolvê-lo no 14º salário.

A partir de 1985, a administração pública foi, crescentemente, entregue aos “representantes de quem tem voto no Congresso”. Iniciou-se uma regressão lenta e imperceptível do processo natural da entropia. E a Caixa não foi exceção. É isso, basicamente, que explica por que no período 1990-2016 o Brasil foi sendo empurrado para “fora do mundo”.

Em 1990, o PIB per capita do mundo (em paridade do poder de compra de 2011) era de US$ 8.920, e o do Brasil, de US$ 10.344. Em 2016, eram, respectivamente, US$ 15.066 e US$ 14.024. Enquanto a economia mundial cresceu 69%, ou seja, 2% ao ano, a economia brasileira cresceu 36%, um mísero 1,2% ao ano. Graças à política econômica das últimas duas décadas, o Brasil é hoje notável apenas por ser o maior fornecedor de água doce para a China, ao preço de ter sacrificado a sua indústria.

Curiosamente (ou talvez, oportunamente) foi também o período em que a Caixa ganhou musculatura em outros campos: começou ingressando nas páginas de “economia” dos jornais com projetos mirabolantes; passou a um formidável protagonismo “político” e, infelizmente, aterrissou nas páginas “policiais”…

Ao longo dessas duas décadas foi socorrida mais de uma vez pelo Tesouro. Ainda agora talvez precise de um aumento de capital da ordem de R$ 15 bilhões que o Tesouro (também “quebrado”!) não tem. Algumas das soluções propostas são horríveis, porque propõem dar mais uma “tunga” nos trabalhadores… A melhor é uma solução “caseira”: capitalizar todo o lucro (que vai faltar na receita do Tesouro) e vender alguns ativos em leilões bem projetados.

A verdade é simples: devido à falta de controle, a Caixa deixou de cumprir os parâmetros mínimos fixados pelo Banco Central para as entidades financeiras “solváveis”. Em poucas palavras, sem um substancial aumento do seu capital, a Caixa Econômica Federal, que nos últimos 160 anos foi a instituição mais “segura” do país, pode se tornar insolvável. É claro que isso não acontecerá porque, na emergência final, o Tesouro fará o aporte necessário, distribuindo seu custo por toda a sociedade.

O que espanta é o comportamento insensível da sua administração com relação à higidez do patrimônio que deveria proteger acima de qualquer interesse. Quebrada como está, a administração da Caixa propôs-se um aumento de 37% dos salários para 2018 (quando os salários dos bancários foram corrigidos em 3%!): 1) para o presidente… R$ 97 mil por mês; e 2) para os 12 vice-presidentes… R$ 87 mil.

A grande esperança dos cidadãos que querem continuar a ver a Caixa Econômica Federal como a instituição mais segura para guardar seus pequenos recursos é que “se vayan todos”! Aplique-se na substituição o rigor da excelente Lei 13.303/2016, que dispõe sobre a governança das empresas públicas.

No caso da Caixa, entretanto, como o governo detém 100% do capital transferir ao Conselho de Administração (de livre nomeação do governo) a responsabilidade de escolher os dirigentes da instituição pode ter um efeito simplesmente cosmético. A questão é que, como os administradores escolhidos devem ser submetidos ao escrutínio do Banco Central, este, agora, perigosamente, assumiu uma responsabilidade “indireta” que tem tudo para lhe dar dores de cabeça.

O problema da boa administração das empresas públicas – servir ao público e não servir-se dele – ainda está para ser resolvido não apenas nos países “capitalistas”, mas também e principalmente, naqueles que se pensam “socialistas”. Este é assunto para outro artigo…

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras