A produtividade das companhias de saneamento com participação de capital privado tende
a ser maior do que quando o capital é unicamente estatal

Por Jerson Kelman / Benedito Braga
11/07/2018 0:00               

Sexta-feira 6, dia da eliminação do Brasil na Copa, o governo federal promulgou medida provisória (MP) que muda o marco legal do saneamento. Com a atenção do país voltada para o futebol, não surpreende que o ato tenha passado quase desapercebido. Mas suas consequências serão sentidas ao longo dos próximos anos.

A MP foi elaborada tendo como pano de fundo a percepção de que somos lanterninha na Copa do Saneamento porque gastamos pouco e mal. De fato, recursos públicos têm sido desperdiçados na manutenção de provedores de serviços que servem melhor à própria corporação do que à população e em obras não prioritárias, que frequentemente não são concluídas e, quando o são, frequentemente não funcionam.

Agora que a fonte de recursos fiscais minguou, constata-se que há ainda milhões de brasileiros sem acesso à água potável. E que o esgoto de mais da metade da população não recebe tratamento adequado, causando poluição dos rios e doenças, principalmente nas comunidades carentes.

Serviços públicos são custeados pelas tarifas pagas pelos consumidores e pelos impostos pagos pelos contribuintes. Se a parcela oriunda dos contribuintes diminui devido à crise fiscal, parece óbvio que deve aumentar a parcela oriunda dos consumidores ou diminuir a qualidade e abrangência dos serviços. Felizmente, porém, há uma terceira via: o aumento da produtividade. Ou seja, fazer mais com menos.

Há evidência empírica de que a produtividade das companhias de saneamento com participação de capital privado tende a ser maior do que quando o capital é unicamente estatal. Dentre as estatais, as mais bem administradas em geral contam com a participação de acionistas privados e/ou celebram PPPs (Parcerias-Público-Privadas) com parceiros privados.

Independentemente da questão da produtividade, é imperioso atrair capital privado para o setor porque não há mais dinheiro público que possa fazer frente aos investimentos ainda necessários. A MP identifica corretamente um dos gargalos para que essa atração ocorra: a fragilidade e a fragmentação regulatória. Atualmente, os investidores se sentem inseguros porque qualquer município pode constituir agência reguladora própria, que dificilmente terá competência técnica e independência decisória para calcular as tarifas necessárias para manter o equilíbrio econômico-financeiro da concessão. Muito diferente do que ocorre no setor elétrico, que dispõe de uma única agência reguladora para todo o país (Aneel) e que já logrou disponibilizar o serviço para praticamente todos os brasileiros.

Para equacionar o problema, a MP atribui à Agência Nacional de Águas (ANA) a responsabilidade de instituir as “diretrizes nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico”.

A MP traz diversos avanços. Por exemplo, a ANA poderá restringir o uso da água de qualquer rio, não importa se estadual ou federal, sempre que ocorrer uma seca. Outro exemplo: os proprietários de imóveis não conectados à rede de coleta de esgoto, quando disponível, além da obrigação de pagar a tarifa como se estivessem conectados, estarão sujeitos a multas devido aos transtornos — mau cheiro, por exemplo — causados à coletividade. No caso de famílias de baixa renda, a conexão poderá ser feita gratuitamente, e o correspondente custo considerado no cálculo tarifário.

Todavia, nem tudo são flores. A MP cria incentivos para que os municípios superavitários se desvinculem da companhia estadual e passem a concessão para a iniciativa privada, sem exigir que a nova concessionária pague à antiga os ativos ainda não depreciados. Dessa maneira, a antiga concessionária tem que aguardar a indenização, em geral por muitos anos, na fila de precatórios do município. Trata-se de regra que subtrai recursos das companhias estaduais para a execução do saneamento nos municípios deficitários, agravando ainda mais a desigualdade hoje existente. Conforme explicado pelo primeiro autor em artigo publicado nesta mesma seção (“Falso dilema”, 22/06/2017), quem levar o filé mignon deveria levar também o osso.

Jerson Kelman é professor da COPPE-UFRJ e Benedito Braga é professor da USP