Por Ana Conceição e Sergio Lamucci – Valor Econômico

06/09/2019 – 05:00

As novas regras de saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) propostas pelo governo devem dar um impulso de curto prazo à atividade econômica, mas podem comprometer a capacidade de investimento do fundo, avaliam economistas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). Eles destacam que o FGTS é fonte importante de recursos para projetos de habitação popular, infraestrutura e saneamento.

Fazer frente às duas novas modalidades de saque implica provavelmente reduzir, no futuro, a poupança necessária para investimentos na economia. “A medida provisória editada pelo governo estimula um componente do PIB que está crescendo o dobro da economia [o consumo das famílias] e tira recursos de onde está o colapso da demanda, que é o investimento. As regras ajudam no curto prazo, e são legítimas, mas não vão resolver o problema do país”, afirmou Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro, do Ibre/FGV, em evento realizado no Valor.

A Medida Provisória 889 autoriza mais duas opções de retirada além das existentes: o saque imediato de cada conta, de R$ 500, que pode ser feito por todos os cotistas, e o saque-aniversário, pelo qual se pode retirar de 5% a 50% dos recursos, mais uma parcela de R$ 50 a R$ 2.900, dependendo do valor total dos depósitos. Segundo estimativas do Ibre/FGV, o impacto do saque imediato seria de 0,15 ponto percentual no PIB deste ano neste ano e de 0,35 ponto percentual no ano que vem. A projeção do governo é que o saque imediato retire R$ 40 bilhões do fundo. No saque aniversário, se todos os cotistas aderirem, a retirada seria de R$ 75 bilhões no primeiro ano, nos cálculos do Ibre/FGV.

O demonstrativo financeiro de 2018 ainda não foi divulgado, mas parece improvável que o fundo tenha recursos para esses saques adicionais, afirma Livio Ribeiro, pesquisador sênior da área de economia aplicada do Ibre/FGV. Em 2017, para atender a obrigação de pagar R$ 44 bilhões das contas inativas, o fundo lançou mão das vendas de ativos e do uso de uma reserva de cerca de R$ 18 bilhões. Isso piora o desempenho atuarial do FGTS na medida em que gera menos caixa, menos ativos e, potencialmente, menos lucros. O governo garante que o desempenho atuarial do fundo não será afetado com as medidas previstas na MP, mas isso não está claro.

A MP surge num momento de queda acentuada da arrecadação líquida e em que a mudança de perfil de investimentos do fundo e a queda dos juros têm reduzido a rentabilidade da carteira do FGTS. A despeito disso, no planejamento de 2018, o conselho curador do fundo manteve a meta de investir em torno de R$ 80 bilhões ao ano, a maior parte em habitação, entre 2019 e 2022, aponta Ribeiro. Em 2017, a rentabilidade da carteira total do FGTS foi de 6,4%, mas chegou a ser de 10% em 2008. Os títulos de valores mobiliários, que chegaram a render 15% em 2008, caíram para 7,4% em 2017. A rentabilidade das operações de crédito, historicamente menor, oscilou entre 6% e 7% no período.

Espelho na mudança do perfil das aplicações, os indicadores de liquidez do fundo, que são sua margem de manobra, estão caindo. Ao mesmo tempo, a arrecadação líquida recua desde 2014 e, em 2017, com a queda do emprego formal e também dos salários, caiu para R$ 4,9 bilhões. Em 2013, chegou a R$ 18,7 bilhões.

Nesse sentido, os economistas apontam a necessidade de uma discussão sobre a governança do FGTS, inexistente no passado e hoje. Esse debate se faz ainda mais importante diante da multiplicidade de cenários possíveis que a MP representa para o patrimônio líquido do fundo.

“O fundo já está operando além de sua capacidade de investimento. As regras da medida provisória podem acentuar o problema”, diz Ribeiro. Embora o conselho curador autorize R$ 80 bilhões de investimento ao ano, não quer dizer que esse valor total será usado. O fundo, contudo, tem um histórico de execução em torno de 80%, e que em habitação chega a 90%. Assim, mantido o perfil de execução, em um horizonte de dez a 15 anos, que é relevante para um instrumento que foi constituído como poupança, pode ser que o fundo “não fique de pé”.

“Não estou dizendo que vai quebrar, mas é necessária uma discussão sobre governança, sobre cenário de riscos”, afirma Ribeiro.

Como o fundo é obrigado por lei a manter uma reserva, será necessário que se desfaça de ativos – títulos de valores mobiliários, basicamente – para cumprir os investimentos anuais e manter a reserva de liquidez intacta. Na avaliação dos economistas, é mais um sinal de que o atual ritmo de investimento pode não ser sustentável nos próximos anos. “O curto prazo está apertando. O comportamento atuarial do fundo tem riscos crescentes, que deveriam ser tratados antes que se materializem em problemas”, afirma Ribeiro.

Os economistas do Ibre avaliam ainda que o cenário de longo prazo desenhado pelo governo na formatação da MP, de que os saques levariam a um crescimento do emprego e da arrecadação do fundo é possível, mas não provável. Segundo os cálculos do governo, em um prazo de dez anos, o cumprimento da MP 889 aumentaria o PIB per capita em 2,6 pontos percentuais e a população empregada com carteira assinada em 5,6%, o que implicaria mais 2,9 milhões de empregos. A arrecadação do FGTS aumentaria em R$ 11,3 bilhões. “Como há uma visão talvez muito otimista do impacto das mudanças estruturais do fundo sobre a economia e sobre a produtividade, os efeitos dos saques seriam compensados. Mas, dado que é um fundo, deveria haver uma análise de risco olhando para vários cenários”, afirma Silvia.

Comentando outros aspectos da MP, os economistas consideram que não está claro um dos preceitos contemplados na medida, de que os saques ajudarão a elevar a produtividade da economia, ao reduzir a rotatividade dos trabalhadores brasileiros no emprego, historicamente alta. A literatura sobre o tema, afirmam, é vasta, mas inconclusiva. Deve haver algum ganho de produtividade, mas modesto.

Na Carta do Ibre a ser divulgada nos próximos dias, Luiz Guilherme Schymura, diretor do Ibre-FGV, escreve que as mudanças propostas para o FGTS deveriam “explicitar a preocupação com toda a ampla e complexa gama de temas que envolvem o fundo para que consequências negativas não antecipadas sejam evitadas e os resultados desejados sejam atendidos”.