Por Edney Cielici Dias – Valor Econômico

07/05/2018 – 05:00

A discussão sobre o papel dos bancos de desenvolvimento (BDs) é obscurecida por dois mitos que a dominam. Em contraste com o importante papel dessas instituições em diversas economias, predomina no Brasil a ressaca dos anos recentes, em que o sucesso dos bancos públicos na ação anticíclica em 2008-2010 foi secundado por escolhas perversas do governo federal. Esse quadro suscita uma pergunta: o problema é o instrumento em si ou as condições de seu uso? Para respondê-la, é necessário tirar da frente os referidos mitos.

Os BDs são instituições financeiras públicas com missão de fomento e representam dupla capacidade estatal: 1- de dispor de recursos para atuar decisivamente no mercado de crédito e 2- de congregar pessoal capacitado na promoção de investimentos. Com seus primórdios no século XIX, tiveram grande difusão no século XX, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial. São desse período influentes instituições europeias, asiáticas e latino-americanas – o BNDES, por exemplo, foi criado por Vargas em 1952, com um papel central na industrialização e na diversificação da economia brasileira.

Presente na grande maioria dos países, os BDs tratam de questões estratégicas dos Estados nacionais – são, por exemplo, instrumentos centrais do plano europeu de desenvolvimento, obtendo fundos a baixo custo nos mercados de capitais para viabilizar investimentos de qualificação produtiva, energia limpa, preservação ambiental, infraestrutura, habitação, adaptação ao envelhecimento populacional. Na Ásia, são históricas alavancas de competitividade econômica.

Perspectivas enviesadas dificultam, no entanto, o entendimento da questão. A primeira delas tem a ver com uma crítica aos bancos públicos em geral, o mito do ajuste liberal indolor. Este brota de uma concepção feérica, em que os mercados financeiros são competitivos, a informação é de amplo conhecimento dos agentes e as instituições são facilmente modificáveis. Vende-se, com base nessas premissas, a teoria de que o Estado represa a oferta de crédito ao impedir a livre ação dos mercados. Para resolver esse problema, bastaria o crédito estatal sair de cena e deixar a finança privada tomar conta do galinheiro – todos se ajustariam e seriam felizes para sempre.

O problema dessa visão é que os mercados não são competitivos, a informação é escassa e as instituições não são modificáveis facilmente – na realidade, são relações formais e informais condicionadas pelas estruturas de poder, cuja alteração traz, não raro, resultados inesperados. O crédito estatal ocupa espaços politicamente negociados e tem um papel decisivo nos arranjos nacionais. Se você acredita na virtude incondicional dos bancos privados e de Wall Street, note que larga margem dos contribuintes americanos tem boas razões para discordar disso.

O crédito estatal ocupa espaços politicamente negociados e tem um papel decisivo nos arranjos nacionais

O segundo mito é o da permanência desenvolvimentista, que superestima as ações do Estado nas finanças e na promoção de oportunidades. Ele se baseia no desempenho pretérito dos principais BDs como produtores do desenvolvimento industrial. O problema desse mito é subestimar que a governança é um fator essencial a ser considerado e que as condições de operação dos BDs devem ser ajustadas a cada tempo e a cada caso, em processos não triviais de administração e de política econômica. De fato, há diversas experiências bem-sucedidas de BDs, mas existem casos em que eles foram severamente capturados por interesses, o que os levaram a reformas radicais ou mesmo à extinção.

Cabe a advertência de que as mudanças drásticas de curso nessas instituições tendem a se transformar em emendas piores que o soneto, privando os Estados nacionais de instrumentos valiosos de promoção do investimento, como se verificou nas últimas décadas do século passado na Argentina, com extinção de seu principal BD, e no México, com uma ampla e sistemática reforma liberal que resultou na queda crônica do crédito no país.

No Brasil, o debate inconclusivo sobre o BNDES tem sido daninho. Fazem-se julgamentos por atacado sem apontar especificamente virtudes, fragilidades e vícios. O banco concentra uma elite burocrática apta a preservar a coerência de suas operações e a fazer bom uso de informações estratégicas – o que resultou, historicamente, em excelentes resultados operacionais. Não se enfatiza, no entanto, o amplo poder de definição de agenda do Executivo Federal sobre as políticas implementadas pela instituição, tampouco se demandam avaliações mais finas e permanentes da ação do banco.

O alemão KfW, por exemplo, é um BD maior que o BNDES e funciona como uma força de elite da talvez mais bem sucedida experiência capitalista do pós-guerra. Os títulos do KfW, considerado o banco mais seguro do mundo, são disputados a tapa nos mercados internacionais, possibilitando empréstimos a baixíssimo custo pela instituição. O Executivo Federal alemão tem papel preponderante sobre o banco, mas isso é contrabalançado pela ampla e efetiva participação da sociedade em seu Conselho e em seus Comitês – algo bem diverso do que ocorre com o BNDES, em que, na prática, o presidente da República tem poder irrestrito ao nomear ocupantes de cargos e definir agendas, o que não raro ocasiona descontinuidades e escolhas questionáveis de políticas.

As reformas são bem-vindas, mas elas devem se basear em diagnósticos fundamentados e não em promessas doutrinárias. Para aprimorar, é preciso combinar o polegar forte do Estado com os dedos ágeis da iniciativa privada, como um dia enunciou um perspicaz pensador político. O Brasil tem ficado para trás com um volume restrito de comércio exterior, baixa complexidade produtiva, infraestrutura insuficiente, depredação ambiental. Os BDs com boa governança e capacidade de planejamento são instrumentos valiosos para enfrentar esses desafios. Que as instituições sejam aperfeiçoadas, atendendo anseios democráticos e de justa finalidade social.

Edney Cielici Dias, doutor em ciência política e economista pela USP, jornalista, é autor da tese “Rédeas do Estado e do Investimento – a trajetória dos bancos nacionais de desenvolvimento” (2017).