Por Rubens Naves*, O Estado de São Paulo

O presidente Michel Temer editou recentemente uma Medida Provisória que, na forma de um novo marco regulatório, se propõe a solucionar o grave e persistente déficit de saneamento básico que afeta milhões de brasileiros, degrada o meio ambiente e emperra o desenvolvimento nacional – uma das maiores, mais danosas e custosas dívidas sociais do Brasil.

Há 30 anos, desde a promulgação da Constituição de 1988, o acesso ao saneamento básico é um direito de todo brasileiro, mas, ainda hoje, 35 milhões de pessoas não têm acesso a água tratada e mais de 100 milhões não contam com coleta de esgoto.

Saneamento básico é um conceito que abrange abastecimento de água potável, acesso a rede coletora e tratamento de esgoto e a coleta de resíduos sólidos. As pessoas que vivem sem esses serviços sofrem desvantagens decisivas, sobretudo no que concerne à saúde, mas também em termos de tempo disponível para trabalho, estudos e outros afazeres produtivos (já que precisam se dedicar a atividades que, para os leitores deste artigo, são dispensáveis ao abrir de uma torneira) e, claro, em matéria de qualidade de vida. Além desses impactos diretos e imediatos na vida das pessoas e famílias, que incluem taxas mais altas de mortalidade infantil, a falta de saneamento resulta em graves problemas ambientais, que por sua vez retroalimentam a precarização das condições de vida e desenvolvimento das comunidades desassistidas.

A abundância de evidências dos custos socioeconômicos dessa situação de contínua degradação socioambiental, ainda não foi suficiente para promover uma mobilização nacional eficaz no sentido de solucionar o problema, que precisa ser abordado em suas dimensões técnica, legal, econômica e política. Prova disso é o fato de que, tendo cumprido sete dos oito Objetivos do Milênio, propostos pela ONU, o Brasil fracassou justamente na meta relativa ao saneamento, que previa, com base em dados referentes a 1990, dobrar o contingente populacional com acesso a serviço adequado de esgoto até 2015.

A solução de um problema dessa gravidade, amplitude e complexidade requer efetiva mobilização e ação inteligente, coordenada e decidida. Quando se reuniram esses atributos, o Brasil conseguiu superar desafios de magnitude comparável, como, por exemplo, níveis de inflação que impediam o desenvolvimento nacional e a fome endêmica que flagelava milhões de pessoas nas regiões mais pobres do País.

A MP nº 844 busca esclarecer e racionalizar competências e normas para a gestão do setor, aumentar a segurança jurídica para os investimentos e promover uma maior participação da iniciativa privada na ampliação e gestão dos sistemas de saneamento. São objetivos bem-vindos, que devem integrar a pauta de debate sobre o tema. A proposta, contudo, ignora, em larga medida, o pacto federativo, as competências estabelecidas na Constituição Federal e a experiência do setor.

Por se tratar de um desafio abrangente, que para ser superado exigirá a articulação entre vários níveis de governo, instituições públicas e agentes de mercado país afora, o novo Marco Legal do Saneamento deverá ser fruto de um amplo acordo, e precisará da chancela e do decidido apoio político do governo que, em breve, emergirá das urnas. Por isso, a MP é inoportuna.

A causa do saneamento básico adequado e sustentável para todos deve ser situada no patamar que lhe cabe – entre os maiores desafios diante do Estado nacional e da sociedade brasileira.

Os atuais candidatos, em todos os níveis, sem exceção, em especial à Presidência da República, devem ser cobrados no sentido de dispensar a atenção devida e assumir os compromissos necessários para que o País finalmente possa reduzir rapidamente um dos déficits que mais emperram o desenvolvimento nacional: a dívida social e civilizacional do saneamento básico.

*Rubens Naves, advogado, membro da Comissão de Saneamento da OAB/SP, autor do livro “Água, crise e conflito em São Paulo”, Ed. Via Impressa