ENTREVISTA – Pesquisadora portuguesa Sofia Cordeiro, convidada para o Concasan 2018, fala sobre como tornar Cidades Conscientes na Gestão da Água

“Se pagássemos pela água em função da escassez atual e da escassez estimada, a água seria muitas vezes mais cara”

Sofia Cordeiro, representante do Gabinete Municipal de Meio Ambiente da cidade de Lisboa, na abertura da Concasan

A representante do Gabinete Municipal de Meio Ambiente da cidade de Lisboa, Sofia Cordeiro, participou na quarta (6) da abertura do 2º Congresso Catarinense de Saneamento em Florianópolis. A pesquisadora é responsável pela implementação do programa da International Water Association (IWA) na capital portuguesa e apresentou os princípios para as Water Wise Cities – Cidades Conscientes na Gestão da Água. Nesta entrevista, ela explica o que são esses princípios, quais os desafios e os benefícios do programa — uma inspiração para Santa Catarina.

O que são os Water Wise Cities – princípios para cidades conscientes na gestão da água?

As Cidades Conscientes na Gestão da Água são um projeto da International Water Association (IWA) para promover o trabalho em rede das autoridades municipais e promover os projetos de gestão consciente do recurso água por parte das cidades. A IWA é a maior organização mundial de profissionais do setor da água, reunindo uma equipe de membros e pessoal de mais de 130 países em todos o mundo. A IWA organiza também eventos de excelência para reunir esses profissionais e divulgar as melhores práticas, resultados científicos e tecnológicos no setor da água, além de desenvolver lobbying a nível global para colocar a água na agenda política e influenciar positivamente as melhores práticas na regulação e desenvolvimento de políticas.

Uma cidade pode aderir aos 17 Princípios para as Cidades Conscientes na Gestão da Água e assim fazer parte desta comunidade mundial. Os 17 princípios estão organizados em quatro níveis de ação: 1) serviços de água regenerativos, 2) Desenho urbano sensível à água, 3) Cidades ligadas às suas bacias hidrográficas e 4) comunidades conscientes na gestão da água. Esses quatro níveis de ação são trabalhados com base em cinco pilares: Visão, Governança, Conhecimento e Competências, Ferramentas de Planejamento e Ferramentas de Implementação.

A base da adesão de uma cidade não é uma demonstração objetiva de resultados mas antes do compromisso político estabelecido no sentido de respeitar os 17 princípios em todas as suas áreas de atividade. Claro que esse compromisso deve estar alicerçado já em projetos em curso que demonstrem que a cidade está empenhada em defender a água como recurso precioso. As cidades aderentes têm de mostrar que já estão a fazer o caminho para que os 17 princípios sejam cumpridos.

Como está sendo a implementação do programa em Lisboa? Quais os maiores desafios?

A adesão de Lisboa ao programa Water Wise Cities aconteceu apenas em 2018, mas começamos a trabalhar essas questões do ponto de vista urbano há cerca de 10 anos. A cidade tinha um modelo de desenvolvimento centrado na construção e na utilização do transporte individual. Esse modelo, todos sabemos hoje, não poderá suportar a pressão demográfica que se prevê para as cidades nas próximas décadas. De acordo com as previsões das Nações Unidas, em 2050 70% da população mundial viverá em cidades. Para poder acomodar esse crescimento populacional com qualidade de vida, temos de mudar o paradigma de como gerimos as cidades. Há 10 anos começamos esse caminho, procurando recuperar áreas construídas para incluírem espaço verde e permeável e para “reservar” áreas que estavam destinadas a construção para se manterem permeáveis. Por outro lado começamos a tentar alterar o desenho urbano para favorecer a mobilidade ativa (a pé ou de bicicleta) e partilhada (transporte público ou individual partilhado). Os maiores desafios são certamente o de nos mantermos fiéis a esta visão de cidade apesar da crítica constante dos que continuam a querer uma cidade desenhada para os carros e com construção desenfreada. Por outro lado, alguns dos projetos mais inovadores que pretendemos desenvolver não têm ainda um enquadramento legislativo, nem nacional, nem mesmo europeu. Por isso temos também o desafio de ajudar a construir esse quadro legislativo e assim abrir o caminho para que mais cidades possam vir a desenvolver soluções semelhantes.

Quando começou esse processo e quais os resultados até agora? Como a população e a gestão pública sentem?

Em Lisboa, o caminho para uma gestão mais consciente da água começou há mais de 10 anos. Reunindo o 1º e 3º nível de ação das Water Wise Cities “Cidades ligadas às bacias hidrográficas”, há cerca de 10 anos começou a ser feito um investimento muito forte nos sistemas de tratamento de águas residuais para garantir que o Rio Tejo, que banha 15 municípios em Portugal. Neste momento garantimos, com estas cidades e com as empresas públicas de saneamento, que 99,7% da água residual que chega ao Tejo é tratada com elevado nível de qualidade e garante um rio limpo e com uma biodiversidade muito importante. O estuário do Tejo, mesmo à saída de Lisboa, é uma das mais importantes zonas úmidas da Europa, onde nidificam 250 aves aquáticas e esse patrimônio natural tinha que ser salvaguardado acima de tudo. Além disso, as estações de tratamento de águas residuais têm que conviver com zonas residenciais e era muito importante garantir que os cidadãos que vivem perto delas têm qualidade ambiental. Por outro lado, como já referi, iniciamos também esse percurso para uma cidade em que o desenho urbano é sensível à água (2º nível de ação), procurando criar soluções de base natural para minimizar efeitos de cheia ou garantir que os cursos naturais de água na cidade que foram sendo pavimentados são renaturalizados quando possível e que a água pode ser um elemento de conforto térmico na cidade.

Para ser breve, refiro apenas um dos nossos projetos mais recentes, que está a iniciar a fase de execução, que é o de começar a usar água reciclada (água residual tratada) para usos não potáveis. Todos os anos 75% do consumo de água do município (que representa no total 15% do consumo da cidade) é para usos não potáveis. Contudo, usamos água potável de elevada qualidade, para a rega de espaços verdes e para a lavagem de ruas. Esta água, além de ter uma qualidade “demasiado” elevada para estas finalidades, tem um custo elevado de transporte e tratamento que não se justifica para esses fins. Decidimos há alguns anos realizar um investimento avultado para poder usar a água residual tratada e estamos neste momento a realizar os primeiros pilotos com rega em espaço público.

A população tem manifestado uma exigência crescente em matéria ambiental. Quando está a chover e vêem um aspersor de rega ligado, recebemos reclamações por desperdício. Isso é um sinal de vitalidade e envolvimento dos cidadãos com as causas ambientais notáveis. Precisamos de fomentar essa proatividade porque precisamos muito de cidadãos preocupados para podermos atingir todos os nossos objetivos, uma vez que nem todos dependem só da gestão municipal.

Do ponto de vista da gestão pública, tanto o município como as nossas empresas públicas de distribuição de água potável e de tratamento de águas residuais, estamos muito empenhados. Os projetos de água são, sem dúvida, os projetos do atual mandato (2017-2021) porque temos consciência que os desafios das próximas décadas terão muito a ver com alterações climáticas e escassez de água.

É possível falar de valores? O quanto a melhor gestão da água gera de economia para a cidade?

Podemos apresentar números impressionantes, tanto do lado da despesa como do lado da economia. Por exemplo, no total de 18 municípios, foram feitos investimentos de 770 milhões de euros para o tratamento de águas residuais. É um valor muito elevado, mas são “apenas” 220 euros /habitante que garantem que despoluímos o Rio Tejo. O aumento da qualidade de vida nas cidades abrangidas é imensurável.

Em relação a poupanças, por exemplo, apenas com um programa sistemático de reparação de fugas nas nossas fontes e lagos da cidade, conseguimos poupar 38% da água potável faturada. 38% que estava sendo desperdiçado. 1,3 milhões de m3 de água por ano que estava a ser desperdiçada foram poupados em apenas dois anos e com reparações relativamente simples. Por vezes, basta ter a visão política e colocar o assunto certo na ordem do dia. Ainda não estamos satisfeitos porque, por um lado, sabemos que ainda há fugas e surgem novas e por outro, temos ainda por fazer a maior parte da modernização dos sistemas de rega da cidade. E nos sistemas de rega, por exemplo, apenas a troca por um sistema de programador inteligente com ligação a dados meteorológicos atualizados pode poupar 30 a 50% do consumo de água. Quando queremos continuar a crescer a estrutura verde da cidade, é muito importante poder fazê-lo com menos água ou mesmo sem nenhuma água. Essa é outra das inovações que estamos a introduzir. Adaptamos soluções de prados de sequeiro biodiversos que são usadas na agricultura para melhorar a qualidade do solo por fixação de nitrogênio e carbono e começamos a implementar essa solução em meio urbano, para ocupar porções significativas dos nossos parques. Algumas dessas soluções não usam água nenhuma. No verão ficam secas e são cortadas e se regeneram sem nova plantação, apenas com as sementes do ano anterior. Isso também requer sensibilização da população e não se adapta a todas as situações, mas permite um crescimento de áreas verdes com uma poupança muito significativa de água.

Quando olhamos para a água como um recurso precioso, não podemos olhar apenas para as poupanças financeiras ou mais imediatas. O valor que pagamos pela água corresponde apenas à despesa de tratamento e transporte, mas não corresponde (ainda) à “despesa ambiental”. Se pagássemos pela água em função da escassez atual e da escassez estimada, a água seria muitas vezes mais cara. O que de mais significativo geramos de economia é a possibilidade de vivermos nela e de podermos ter mais pessoas a viver e a trabalhar na cidade com qualidade ambiental por muitos séculos.

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