Após mostrarem melhoras significativas por mais de uma década, os indicadores de mortalidade infantil apontam que esse ritmo de avanço foi bastante reduzido na taxa geral e já registra retrocessos preocupantes nos números de mortes evitáveis para crianças entre um mês e quatro anos. Em 2016, dado mais recente disponível, o número de óbitos nesta faixa etária aumentou 11%, segundo números disponíveis no Ministério da Saúde, após 13 anos de queda. A alta em 2016 foi generalizada, apenas Rio Grande do Sul, Sergipe, Paraíba e Distrito Federal tiveram redução das mortes nesta faixa. Em alguns locais, como Roraima, o número mais do que dobrou.

O número de mortes entre 1 mês de vida e um ano de idade também aumentou no país em 2016, mas menos, cerca de 2%. Como as mortes neonatais (até um mês) continuam caindo, o número total de mortes entre zero e cinco anos não subiu, mas o ritmo de redução vem se desacelerando.

Os dados acenderam um alerta e tem sido monitorados com atenção pelo Ministério da Saúde. A pasta não fechou a taxa global de mortalidade infantil ajustada oficial do país em 2016. Os dados brutos foram consolidados pelo Observatório da Criança e do Adolescente, mantido pela Fundação Abrinq, e indicam uma piora na taxa, para 12,7 mortos em mil nascidos vivos em 2016. Em 2015 esse número era de 12,4.

Outro dado de mortalidade infantil, da Unicef, que usa fonte diferente para os nascidos vivos (a estimativa das Nações Unidas) e observa as mortes neonatais (até um mês), não registra essa piora. A taxa média sai de 8,2 para 7,8 na passagem de 2015 para 2016. A estimativa para taxa de mortalidade infantil média da Unicef ficou em 13,5 em 2016 (era 14 em 2015). No entanto, nas estatísticas é visível que a melhora mais significativa vista nos primeiros anos da década perdeu tração.

A brutal recessão, somada à crise fiscal, refletida na escassez de recursos públicos e cortes em determinados programas, além da grave seca que atingiu locais do Nordeste do país são apontados como alguns dos fatores determinantes para o aumento das mortes.

Segundo a doutora Fatima Marinho, diretora do departamento que consolida e analisa esses dados no Ministério da Saúde, a taxa de 2016 não foi ainda finalizada, mas ela considera relevante observar os números absolutos quebrados por faixas, até porque houve uma redução atípica no número de nascimentos em 2016 – ano em que se multiplicaram os casos do vírus zika – que em alguns estados chegou a 9%.

A taxa de mortalidade infantil considera o número de mortos até um ano a cada mil nascidos vivos. Monitora-se ainda a taxa que se chama de mortalidade na infância, que considera o número de crianças de até 5 anos mortas a cada mil nascidos vivos.

“O número de mortes infantis, no geral, em 2016 cai, embora se reduza a velocidade de queda. No entanto, vemos que as mortes pós-neonatais [após 28 dias de nascido] e até 4 anos aumentam”, observa ela. Para Fatima, isso mostra que na parte neonatal, mais influenciada pela tecnologia, a evolução continua, no entanto, as faixas que são mais vulneráveis à piora da pobreza, mostram altas que estão sendo acompanhadas com atenção.

“A mortalidade pós-neonatal, que é a mais sensível ao desenvolvimento social, está tendo um repique. Algumas dessas causas de morte mostram aumento em 2016 e projeta aumento para anos seguintes também. Algumas são muito associadas à pobreza, por exemplo, as gastrointestinais, que vinham reduzindo fortemente, mas tem repique em 2016. Já vínhamos observando e assinalando esses problemas, então vamos ver em 2017 se isso se mantém ou conseguimos reverter”, afirma Fatima.

Ela lembra, no entanto, que o país conseguiu atingir as metas do milênio (reduzir dois terços da mortalidade infantil entre 1990 e 2015) em 2012 e os estados que não cumpriram a meta foram alguns dos mais ricos. “Nordeste e Norte cumpriram muito além e aí reduziram a desigualdade”, diz.

Especialistas consultados pelo Valor avaliam que a piora dos indicadores ligados à sobrevivência e ao cuidado com a primeira infância, como a desnutrição, foram afetados de maneira significativa pelo encolhimento de programas especializados em assistência à saúde da mãe e ao aleitamento materno.

Levantamento feito pela Fundação Abrinq aponta que alguns programas tiveram corte nos investimentos em 2016. Um exemplo é o programa Rede Cegonha, voltado à atenção à mãe no pré-natal, parto e nascimento, e o desenvolvimento da criança até os dois primeiros anos de vida. Em 2015, foram gastos no orçamento federal só R$ 21 milhões de R$ 172 milhões previstos; no ano seguinte, o valor liquidado caiu a R$ 18,3 milhões, dos R$ 117 milhões previstos no início daquele ano.

No Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), em que o governo federal repassa aos Estados recursos para garantir a alimentação na escola para alunos de todas as fases da educação pública, também encolheu o volume liquidado no Orçamento de R$ 3,7 bilhões para R$ 3,4 bilhões. “Há uma fragilização considerável das políticas sociais voltadas à criança”, diz Denise Maria Cesario, gerente executiva da Fundação Abrinq.

Outro quadro que piorou foi o da desnutrição. O percentual de crianças menores de 5 anos em desnutrição (de baixa estatura para a idade) aumentou de 12,6% para 13,1% de 2016 para 2017, de acordo com dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) reunidos pela Fundação Abrinq. Também em 2015 e 2016 ficou estagnado em cerca de R$ 27 bilhões o orçamento do Bolsa Família, que transfere renda diretamente às famílias em situação de pobreza e extrema pobreza.

Também aumentou em 14 Estados a desnutrição em crianças menores de cinco anos, indicador que mede o número e percentual de crianças menores de 5 anos com baixa estatura e muito baixa estatura para a idade, de acordo com os dados do Sisvan.

Para o coordenador de políticas públicas do Insper, Naercio Menezes, o encolhimento de gastos sociais durante a crise econômica reflete decisões equivocadas a respeito das prioridades do gasto público, especialmente em tempos de recessão, quando a população vulnerável é a mais atingida. Ele destaca que, mesmo do ponto de vista fiscal, é muito mais eficiente e barato investir no desenvolvimento da primeira infância do que corrigir erros na população adulta, como déficit de educação e criminalidade.

“O aluno vai repetir de ano, porque sobreviveu a condições muito precárias ao longo da vida. Aí, depois, chega no ensino médio e sai porque está muito velho, porque não acompanha. Não consegue entrar no mercado formal, fica rodando entre o desemprego, entre ser ‘nem-nem’, e eventualmente acha que o crime vale mais a pena”, exemplifica o pesquisador. Naercio cita exemplos de gastos públicos que poderiam ser cortados antes que fossem prejudicados os programas sociais voltados às crianças pobres.

“Mesmo em situação de crise, você tem que priorizar essa áreas para evitar mais o problema futuro e tirar subsídios injustificados”, afirma citando o financiamento de dívidas tributárias, Refis e dívidas rurais. “Você segura todas essas despesas porque a população mais vulnerável não tem poder de pressão”, afirma.

“A mortalidade infantil não reflete apenas problema de renda e segurança alimentar, mas todo o atendimento materno e infantil”, afirma a pesquisadora Lena Lavinas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Os dados de mortalidade infantil até um ano estão muito mais ligados à provisão dos serviços adequados à mãe e à criança. Portanto, isso diz respeito à qualidade e quantidade da oferta de serviços de saúde. E que diz respeito a uma série de outras coisas, como as condições de saneamento em que a criança vai morar”, diz.

Lena cita também a estagnação de programas focados em levar saúde a famílias em localidades isoladas, como o Mais Médicos. “A queda da mortalidade infantil estagnou. Isso reflete uma piora das condições de vida em que as crianças não estão sendo preservadas, e não tem nada a ver com Bolsa Família, mas com saneamento, saúde”.

Fatima, do Ministério da Saúde, concorda que o encolhimento do Mais Médicos pode ter tido efeitos indesejáveis. Ela cita o exemplo do semiárido nordestino. “Onde houve aumento de morte por diarreia? Geralmente na população muito pobre. Não se morre mais por isso, mas houve um repique. Vemos lugares nos municípios do semiárido, por exemplo, que eram mais atendidos pelo programa Mais Médicos, que tinham reduzido bastante essas mortes, e agora isso volta a crescer porque o programa encolheu também”, diz. Ela observa que houve ainda aumento da morte materna e que restrições de investimentos acabam por causar danos à saúde coletiva.

Sobre a desnutrição infantil, Lena aponta a implementação de creches públicas como ferramenta importante para garantir que, mesmo em tempos de recessão e desemprego, as crianças tivessem alimentação adequada. E, mesmo com a queda da inflação, medidas como o aumento dos preços do gás fragilizaram a segurança alimentar dos mais pobres.

“Se a gente quer combater a desnutrição infantil não é só pensar que é responsabilidade das famílias, mas a oferta de pré- escola e creche contribuiria para oferecer uma oferta variada de alimentação para as crianças. É claro que, se eu tenho um salário mínimo que foi indexado abaixo da inflação e o gás que, em 2017, aumenta 15%, estou empurrando as pessoas para elevar seus gastos com alimentação”, diz Lena.